A segunda vida de Fernando Pessoa: Fitzgerald, Proust, Jane Austen, Joyce...

E se Fernando Pessoa regressasse ao presente sob o heterónimo Vicente Guedes, aquele que foi preterido como autor do Livro do Desassossego para Bernardo Soares? Um romance inédito de João Céu e Silva que o DN está a publicar em 12 capítulos.

75 anos após a morte de Fernando Pessoa aparece um homem em tudo igual ao poeta na esplanada do Martinho da Arcada. Chama-se agora Vicente Guedes, um dos heterónimos do poeta, quer voltar a viver na sua antiga morada, onde agora está a Casa Fernando Pessoa, e assume-se como o seu herdeiro literário. Alguém o está a ensinar a ser Pessoa, recuperando os ensinamentos do poeta W.B. Yeats , de Ian Fleming e Somerset Maugham, três autores enganados pelo mago Aleister Crowley. Vicente Guedes sai do Freixo, com a incumbência de comprar certas peças no leilão do espólio deixado por Fernando Pessoa, mas é no arquivo que na cave do Diário do Notícias onde encontra a explicação para o suicídio de Aleister Crowley na Boca do Inferno.

Todos no mesmo barco: Hemingway, Torga

O navio que aguardava pelos passageiros no cais era enorme e elegante. Bem diferente dos velhos paquetes atarracados, ressaltando logo à primeira vista as suas linhas aerodinâmicas próprias dos grandes navios modernos. Passada a burocracia do cais com a confirmação das passagens e identidade dos viajantes, demos por nós a passear no convés do 13.º andar, onde uma pista para os passageiros se exercitarem percorria toda borda desse piso do navio numa longa elipse. E nós fizemo-nos a ela em passo lento, mesmo antes de ir ver o camarote que nos teria calhado. Era um procedimento estranho porque a maior parte dos que entravam neste porto optaram por ir conhecer as acomodações, mas Beatriz preferira ver a vista primeiro, pois sabia que o quarto era bom e isso não a preocupava. Creio que o receio dela era mais em relação ao gigantismo do navio do que à comodidade do camarote, não sem alguma razão pois seguir-se-iam vários dias de viagem transatlântica ali presos e essa situação preocuparia qualquer viajante na sua primeira travessia.

Ainda não tínhamos percorrido meio navio quando deparámos com um passageiro que nos pareceu conhecido. Estava vestido de um modo excêntrico e cofiava um bigode maior do que o meu, de extremos capilares compridos e afiados, enquanto observava a cidade atentamente. Abrandámos o ritmo do passeio e ficámos a olhá-lo, tentando identificar a personagem que mais parecia saída do princípio do século anterior do que deste. Havia nele alguma coisa de Eça de Queiroz, se bem que o escritor português fosse mais baixo e magro do que aquele que nos chamava a atenção. Diga-se que este meu reparo era um pouco deslocado, visto que a minha adaptação à personagem de Fernando Pessoa também me transportava para um tempo mais antigo do que aquele em que realmente vivia e o meu bigode não cumpria os cânones exigidos pela moda. Retomámos o nosso andamento e continuámos a descoberta do navio até regressarmos ao mesmo local, onde ainda se mantinha o homem, na mesma situação e a olhar para Lisboa. Só alterara a sua atitude, porque em vez de estar apenas em observação, apercebemo-nos disso enquanto os aproximávamos dele, rabiscava algo num bloco que retirara do bolso do seu casaco. Sugeri a Beatriz que o interrompêssemos nas suas observações e que lhe perguntássemos diretamente quem era? Ela não estava tão curiosa como eu, mas aceitou estabelecer o primeiro conhecimento com um passageiro, até porque teríamos de conviver com gente desconhecida mal o navio zarpasse da capital e assim sendo - disse - não havia uma razão racional para não se o fazer com o navio ainda atracado.

Não nos aproximámos imediatamente de quem decidíramos que iria ser a nossa primeira amizade no navio tal era o afã do passageiro em tomar notas. O sujeito andaria pelos trinta e poucos anos, era decididamente elegante e - apostámos - seria francês. Tudo o indicava, se bem que houvesse nele uma característica percetível de judeu e alguma afetação pouco masculina nos seus modos, coisas que - concordámos - seriam normais num cidadão de França. Também tudo indicava que seria dado às letras ou ao desenho, já que continuava a exercitar uma destas artes no referido bloco há bastantes minutos, os suficientes para termos dado uma segunda volta ao enorme convés do navio antes de nova aproximação ao passageiro.

- Deve ser bastante mimado, daqueles que não adormecia sem um beijo da mãe!

A declaração de Beatriz surpreendeu-me por ser inesperada. Como é que ela era capaz de deduzir ou desdenhar uma situação destas, tão pessoal, só de o olhar durante uns minutos.

- Até aposto que a mãe deverá ser o modelo para a sua vida emocional. Provavelmente, estará a fazer um desenho ou a escrever uns versos para enviar à sua mamã e não vai deixar partir o navio sem enviar a lembrança para França dentro de uma carta perfumada.

Continuava cáustica. Ainda me disse que com toda a certeza o francês iria obrigar um funcionário do navio a ir até ao posto dos correios mais próximo e atrasaria a partida. Expliquei-lhe que este tipo de navios não espera um minuto sequer e que se a largada estava marcada para as cinco da tarde, era exatamente nessa hora que partiríamos.

- Ora, veremos. Dá mais uns minutos.

Quis contrariar a sina que Beatriz tinha imposto àquele passageiro e, pegando-lhe no braço, levei-nos até ao homem. Fiz um ruído com a boca para que reparasse em nós e apresentei-me: Beatriz e Vicente Guedes. O homem - confirmámos que escrevia uns versos na folha onde já desenhara uma flor - ficou surpreendido mas rapidamente recuperou.

- Boa tarde. Conhecemo-nos?

Respondi-lhe que não, mas como iríamos partilhar o navio queríamos apresentar-nos.

- Com todo o prazer. Sou Marcel Proust... Escritor.

Fiquei imóvel e sem reação durante uns segundos, os suficientes para me recompor e, no entretanto, recuperar as memórias que tinha do autor de Em Busca do Tempo Perdido. Revi mentalmente algumas fotografias que o retratavam em mais velho e acreditei que se não estava perante o famoso Proust, só poderia tratar-se de uma boa réplica. E seguiu-se da nossa parte aquilo que os escritores estão cansados de ouvir, alegar que apreciávamos muito a sua obra e, para dar um tom mais real, de que este era um encontro inesperado.

- Tem toda a razão e até lhe posso dizer que se me perguntasse há seis meses se pensava fazer esta travessia do Atlântico responderia que estava bem enganado.

Visivelmente apressado, pediu-nos desculpa por se ter de ausentar mas necessitava de entregar na receção do navio uma carta que acabara de escrever, de modo a que seguisse o mais breve possível. Beatriz sorriu com esta resposta.

- Acredito que nos vamos ver dentro de poucos minutos, mas vou-vos apresentar um nosso companheiro de viagem, com quem poderão conversar até que eu regresse.

Olhámos para trás e confirmámos que alguém se aproximava, com um discreto sorriso a formar-se forçadamente debaixo de um outro bigode. Mais uma vez tive a sensação de reconhecer o vulto que se dirigia para o alegado Marcel Proust, mas duvidei da sua possibilidade. O francês apresentou-nos e, antes de virar costas para entregar a correspondência ao funcionário do navio, o recém-chegado deu um beijo a Beatriz e esticou o braço para me dar um aperto de mão.

- Muito prazer em vos conhecer. Sou James Joyce... Escritor.

A minha suspeita confirmava-se! Após a surpresa causada pela presença a bordo do importante autor francês era a vez de uma outra, a do importante irlandês. Não resisti a dizer-lhe que já lera o seu Ulisses e que gostara muito.

- Já vi que está adiantado no meu próprio tempo. Eu ainda não escrevi essa obra mas sei que a vou escrever logo após terminar o Retrato do Artista Quando Jovem. Estou mesmo a acabar este livro, talvez o deixe pronto durante a viagem se me derem tempo suficiente para rever algumas partes que não contêm a irreverência necessária que lhes quero impor.

Tão estranha conversa manteve-se durante mais alguns minutos, até que Joyce se desculpou com compromissos inadiáveis para se ausentar.

- Mas deixo-vos em boa companhia. Virginia encaminha-se para nós. Vão ver que é uma pessoa extremamente interessante, apesar de não ser muito faladora enquanto não vos conhecer melhor.

Realmente, ou era Virginia Woolf ou o diabo por ela. Aquela cara ossuda e o cabelo comprido apanhado num rabo-de-cavalo que a tornavam inconfundível em qualquer antro de escritores ou rua londrina de outros tempos... Uma época em que dissera que para uma mulher se tornar escritora "necessitava de ter dinheiro e de possuir um espaço só seu". Também conhecia os seus livros, até porque lera O Farol antes de ir para o Freixo, um romance que se passava num cenário autobiográfico de umas férias de verão em meio a crises de depressão que a levariam mais tarde ao suicídio! E aqui estava ela, sorrindo nervosamente perante um casal que Joyce lhe pedira para entreter enquanto ele iria, talvez, continuar as revisões do seu Retrato a publicar brevemente.

Virginia Woolf praticamente não proferia palavra e fui eu a fazer a despesa da conversa, referindo algumas das suas obras, com destaque para a biografia que um cão lhe inspirara e que a tornou no primeiro escritor sério a escrever este género de livro.

- Desculpe-me, mas ainda não escrevi esses livros. Mas, já agora digo-lhe que a ideia do cão não é nada má!

Era a segunda vez que os viajantes com quem falávamos respondiam deste modo: ainda não tinham escrito os livros que os imortalizaram. O que me fez pensar em que ficção estaríamos envolvidos após a entrada neste navio? Enquanto procurava forma de continuar a conversa com a silenciosa escritora - via-se que não estava à vontade com os dois desconhecido a quem Joyce a entregara -, olhei para trás para confirmar se se aproximava alguma outra figura das letras, situação que se repetia desde que Proust iniciara o desfile de famosos da literatura. Principalmente, existia em mim curiosidade para saber se teria direito a conversar com o grande amigo de Virginia Woolf, o polémico Lytton Strachey, e se seria ele o próximo membro deste carrossel literário a aparecer no convés do navio. Não, não se vislumbrava personagem alguma famosa, a não ser uma silhueta de mulher que vinha ainda distante o suficiente para ser reconhecida como Virginia Woolf.

- Vou ter que ir até ao camarote preparar a toilete para o jantar. Não se importam que eu vos apresente uma amiga que também viaja connosco?

Não, era a única resposta a dar-lhe, até porque, além de curiosos sobre a próxima personagem, compreendíamos que Marcel Proust colocara os outros escritores perante a responsabilidade inconveniente de nos entreterem. Uma situação que mesmo não lhes competindo, se tornara atraente para nós! Com um pé já de fugida, Virginia Woolf passou a tarefa para outra escritora, que surgira a coberto de uma capa negra que lhe cobria os cabelos e uma camisa que lhe descobria um pouco o contorno do peito cada vez que a écharpe revolteava com a brisa.

- Eis Jane Austen, decerto que gostarão de a conhecer.

Neste caso, eu fazia par com Beatriz, que até agora não reconhecera fisicamente qualquer das personagens que nos eram apresentadas. Apertámos as mãos e fiz um trocadilho com um dos seus primeiros livros, evitando a resposta já ouvida de "ainda não escrevi esse romance", dizendo-lhe que era com orgulho e sem preconceito que a cumprimentava. Austen, após digerir a sonoridade do meu inglês, sorriu delicadamente com a brincadeira que eu fizera com o título do seu livro Orgulho e Preconceito. Em seguida questionei-a sobre se tinha tido tempo de descer do navio e percorrer algumas avenidas de Lisboa que, enfatizei, seriam muito do seu agrado. Acrescentei que tinha conhecimento de que as capitais não lhe eram os locais mais apetecíveis para conhecer mas que Lisboa era bastante diferente da Londres que em tempos tanto criticara nos seus livros.

- Infelizmente, não estou em condições de passear porque o meu médico proibiu-me de expor a qualquer corrente de ar ou temperaturas baixas. Se o destino do navio não fossem os trópicos, decerto que teria permanecido em casa a terminar o meu próximo romance, The Elliots.

Via-se que Jane Austen estava fraca, daí que educadamente tenha sido eu a devolvê-la à paz do seu camarote. Afinal, deveria ter vindo apenas respirar um pouco de ar puro e ver o possível da paisagem lisboeta enquanto as amarras não eram largadas. Após Austen nos ter abandonado, confessei a Beatriz que não entendia o que acontecera nos últimos instantes e o que significava este círculo de personagens famosas que desfilavam perante nós. Beatriz, que estava de costas viradas para o cais, anteviu que a situação ainda não terminara.

- Se desejas uma explicação para isto, Marcel Proust está de regresso. Podes perguntar-lhe o que se passa neste navio.

Realmente, Marcel Proust caminhava em nossa direção, interpretando a sua composição de dandy enigmático na perfeição. Deveria ter conseguido que lhe enviassem a carta para a mãe antes de o navio partir e essa sensação de felicidade transparecia-lhe na cara. Afiava as pontas do bigode do lado esquerdo enquanto olhava a paisagem e, em paz, aproximou-se de nós.

- É muito bonita esta cidade!

Não disse mais nada nos muitos segundos que seguiram, até decidir comentar um pormenor sobre a saúde de Jane Austen.

- Ela não sabe bem do que sofre mas vai-lhe ser fatal. Nem sei se conseguirá viver o tempo suficiente para ver o seu próximo livro publicado! Segundo me disse um amigo meu que é conhecido do seu médico, Austen poderá ter um linfoma de Hodgkin ou, pateticamente, ter contraído uma gripe bovina através do leite... Coitada, deixará por completar um livro, mesmo que ainda consiga escrever uma dúzia de capítulos...

Proust falava aos soluços, deixando a interpretação de situações futuras ao bel-prazer de cada um. Pelo que disse a seguir, talvez considerasse que Beatriz e eu fazíamos parte do grupo de escritores que se reuniam no navio.

- É o único escolhido em Lisboa ou terá companhia de outros escritores?

Fiquei sem saber o que responder a Marcel Proust. "O único escolhido?" Era então isso que estava a acontecer neste transatlântico, uma reunião de "escolhidos"? Foi Beatriz que decidiu pedir explicações ao francês sobre o filme em que estávamos metidos, tendo feito uma pergunta que, entretanto, Marcel Proust interrompeu sem qualquer educação.

- Aí vem uma pessoa que devem conhecer. É o nosso mestre-de-cerimónias! Infelizmente viaja sem a mulher, que nos divertiria ainda muito mais. Meus senhores: F. Scott Fitzgerald.

Olhámos para trás e confrontámo-nos com o escritor norte-americano. Decididamente, a situação estava a descontrolar-se mesmo se eu, que me autonomeara Vicente Guedes e sucessor de Fernando Pessoa, não tivesse autoridade moral para fazer qualquer julgamento sobre este desfile de estrelas que ia fazer-se ao mar dentro de instantes. Pensei para mim que estaríamos a entrar num campo de concentração marítimo para escritores famosos e que haveria uma explicação plausível para o que acontecia que não nos fora adiantada. Até porque Proust deu a mão a Fitzgerald, assobiou como se estivesse a chamar os outros, que de um momento para o outro surgiram no convés, e partiram num animado grupo em direção ao salão onde seria servido o jantar.

- Esperamo-los na mesa 24 do Salão Nobre para jantarem connosco.

Ainda faltavam duas horas para honrar o convite, tempo que utilizámos para assistir à partida do navio. Enquanto olhávamos para a cidade a ficar para trás, evitámos comentar o que tinha acontecido desde que decidíramos ir passear pelo convés superior e nos tínhamos confrontado com a aparição de um bando de escritores já falecidos. Decerto que haveria uma explicação para esta situação e que não faria parte do sobrenatural, afinal os dotes mágicos de Sena foram afogados na Boca do Inferno - não esquecer os de A Besta com a sua morte natural -, e Beatriz era despojada de tais capacidades. Aliás, ela própria encontrava-se mais surpreendida do que eu e queria que lhe desse uma explicação.

- O Vicente conhecia-os a todos e até fez conversa com cada um.

Lá estava Beatriz a tratar-me por senhor! E de novo um velho pensamento atravessou-me o cérebro, de que poderia ter chegado o momento de a chantagear outra vez para saber a história da sua vida. Se estava assim tão ansiosa por saber o que se passava com este erguer das campas de tantos escritores, eu poderia prometer-lhe um esclarecimento desde que me fizesse a sua própria revelação. Era o momento apropriado para tal e desafiei-a a fazê-lo.

- Não é muito educado da sua parte fazer-me isto logo agora. Não sei se aceitarei esta manipulação...

Vi que tinha acertado no seu ponto mais fraco: a curiosidade. Beatriz desviou o olhar de mim e ficou por vários minutos a ver a cidade que se ia embrulhando numa certa neblina de fim de tarde. Imitei-a na observação de Lisboa a desaparecer, certo de que Beatriz iria contar-me um pouco da sua história. Mas Beatriz permaneceu muda e parecia não estar disposta a denunciar-se. O seu olhar vazio manteve-se durante mais algum tempo até recuperar e desafiar-me.

- Preferiria fazer amor com o Vicente no nosso camarote do que estar com conversas parvas.

E, para aguçar o meu desejo, acrescentou.

- Se não o deixar satisfeito, obrigo-me a contar tudo neste mesmo convés amanhã após tomarmos o pequeno-almoço. Juro!

Dei-lhe o braço e fomos conhecer o nosso quarto com vista para o mar. Mais uma vez, Beatriz adiara a revelação.

O jantar não nos poderia surpreender mais do que imagináramos, mas foi isso que aconteceu. Apesar de F. Scott Fitzgerald estar sem a companhia da mulher Zelda, a sua capacidade inventiva mantinha-se e a festa que se seguiu à refeição só terminou a altas horas da noite, depois de muito se dançar na pista do bar no último andar do navio. Foi nessa noite que conheci mais um pouco de Beatriz porque, a exemplo de todos os membros do grupo de escritores mortos, também foi para além do nível de ingestão de bebidas que suportava e embebedou-se ferozmente. Incapaz de a acompanhar na frenética atividade do grupo, que ora dançava na pista interior, ora o fazia no convés ao ar livre, enquanto um ou outro aproveitava para vomitar, Beatriz acabou por me esquecer e acabar entre as mãos atentas de Ezra Pound e de um enciumado T.S. Elliot, que a disputava ao poeta modernista norte-americano. Não me preocupei com a entrega de Beatriz a estes devaneios, até porque havia tanto dela que eu desconhecia e esta seria uma boa forma de tomar conhecimento da personalidade que escondia com o seu comportamento sempre tão regular.

Reparei que alguém se sentara ao meu lado no balcão do bar e olhei para ver quem seria a figura que abandonara o grupo. Nada menos do que Ernest Hemingway! Fiquei sem saber se se sentara perto de mim para conversar ou se porque esse lugar era o único vazio. Fosse qual fosse a razão, ele meteu conversa comigo, querendo saber o que fazia no navio.

- Você não embarcou connosco em Portsmouth?

Respondi-lhe que não, que embarcara em Lisboa, sendo o meu destino o Brasil.

- Desculpe a pergunta que lhe fiz, mas o Scott apresentou-o como um nome e você disse que tinha outro. Fiquei curioso sobre quem realmente era, pois não entendi patavina da explicação.

Realmente assim acontecera. F. Scott Fitzgerald levara-me até ao topo da mesa, onde era o seu lugar, e dissera em alta voz: "Senhores e senhoras, temos a honra de receber um dos mais importantes poetas da literatura mundial: Fernando Pessoa. Ficara tão surpreendido com o anúncio que demorei alguns segundos a digerir o olhar maravilhado dos convivas à mesa, mas logo corrigi que era Vicente Guedes. A reação que se seguiu fora de surpresa, tendo sido a intervenção de Marcel Proust que esclareceu a dúvida que se instalou em que um se interessara por mim: "Para os que não sabem, Fernando Pessoa criou vários heterónimos e este nosso amigo é um deles." O americano ficara curioso sobre a invenção heteronímica de Fernando Pessoa, de quem nunca ouvira falar apesar de ter andado pela Península Ibérica durante alguns tempos. Disse-me que, principalmente bebia uns copos no intervalo das touradas a que assistia e que fizera um conjunto de reportagens para justificar o dinheiro que recebia por esse trabalho.

- Foi uma época maravilhosa, daquelas que um homem só tem a sorte de encontrar uma vez na vida. Eu fui uma exceção, porque depois da Guerra Civil espanhola ainda apanhei pela frente a Guerra Mundial. Grandes tempos!

Achei que a sua curiosidade sobre mim desvanecera-se mal se lembrou de quem era. Contou-me mais umas histórias da sua passagem pela península e, entre dois copos, lembrou-se da razão que o fizera sentar-se.

- Confesse lá, é muito difícil ser mais do que uma pessoa?

Esta era o género de questão que um sóbrio teria bastante dificuldade em explicar a um embriagado, mas mesmo assim tentei. Afinal, era Hemingway que me perguntava! Ainda comecei a fazer o enquadramento histórico mas o americano rapidamente se perdeu na minha exposição e ficou de olhar perdido a ver o que o grupo fazia nesse momento.

- A sua companheira é muito bonita. Amam-se?

Vi que a conversa de bêbados imperava e que a profusão de personalidades de Pessoa já pouco interessava ao escritor.

- Eu também amei uma mulher perdidamente...

E ficou calado por uns instantes.

- Sabe que conheci um poeta em Espanha que me impressionou muito, frequentávamos um café... Foi morto pelos fascistas...

Deveria referir-se a Lorca. Contei-lhe umas coisas sobre o espanhol para ver se o interessava por Pessoa, mas os olhos de Hemingway mostravam que o homem se pusera a chorar. Decidi calar-me e deixá-lo falar quando se recompusesse. Bebi de uma vez só o gole de whisky que pedi ao empregado e tentei manter-me direito no banco, apoiando com mais força os cotovelos sobre o balcão pois o navio começara a balançar um pouco mais do que era normal. Hemingway ficou a chorar por mais um bocado, depois abraçou-me e desejou-me boa sorte. Antes de regressar ao convés, onde o grupo dançava ainda mais freneticamente do que antes com a ajuda das ondas, repetiu-se.

- Eu também amei...

O lugar não ficou vazio por muito tempo. Alguém se sentou nele e pediu ao empregado um cálice de Vinho do Porto. Quem seria o conviva que pedia uma bebida do meu país? O álcool que bebera de um trago fazia um efeito que, conjugado com o balanço do navio, dificultava os meus movimentos. Mesmo assim, virei-me em sua direção e vi um rosto que me parecia conhecido. As feições do homem pareciam talhadas na pedra de tão duras que eram, mesmo que só o visse de perfil. O novo ocupante do lugar olhava em frente, não sei se a mirar-se no espelho ou apenas a comportar-se como seria normal em si. Imitei-lhe o pedido quando o empregado voltou com o seu Porto, pensando que seria uma boa forma de meter conversa com o vizinho.

- Isto é uma zurrapa mas pelo menos sabe um pouco a casa!

Dito isto, ficou de novo em silêncio. Uns minutos mais tarde, enquanto saboreava o que ele definira como uma zurrapa e reparava que ele falara em português, reconheci quem era a personagem que se sentara ao meu lado: Miguel Torga! Foi então que o álcool me fez confessar, em voz alta para que ele me ouvisse, que mais parecia estar num cemitério do que num navio, tal era o número de mortos que me rodeavam.

- Mortos e vivos! Aqui, neste navio, ninguém está morto mas também ninguém está vivo. E o senhor o que faz aqui disfarçado de Fernando Pessoa, ou de Vicente Guedes como se anunciou à mesa?

Era a pergunta mais direta que me faziam desde que entrara no paquete e dera com um bando literário da mais fina escolha. Mas, já um pouco embriagado, respondi à Hemingway, calando a resposta com soluços.

- Bem, já vi que alguma coisa lhe fez mal. Vamos até ao convés apanhar ar e falar um pouco. Já tinha a língua enferrujada de falar tanto english e franciú. Venha, não lhe fará mal algum!

Levantei-me e acompanhei-o até ao exterior do barco. Torga procurou um local onde estivéssemos mais em paz mas que ao mesmo tempo permitisse observar o nosso grupo em festa.

- Como se divertem. Tem sido sempre assim desde que estou com eles, e logo eu que não tenho paciência para isto.

Enquanto o ouvia, olhava para a felicidade de Beatriz, agora a dançar com o Hemingway. Fiquei com alguns ciúmes, mas a voz seca do meu novo amigo chamou-me à realidade.

- Se não fosse estarem a pagar-me a viagem, teria ficado em casa.

O sujeito apresentou-se, como Miguel Torga: poeta, escritor e também médico na vida real.

- Mas creio que isso já sabia porque me reconheceu.

Disse-lhe que sim, tentando focar a a minha atenção no que ele estava a dizer, mesmo que a imagem de Beatriz tão divertida se impusesse mais do que queria neste princípio de conversa. No entanto, achei que esta seria a oportunidade para esclarecer o que se passava a bordo e foi sobre isso que lhe fiz várias perguntas sem mais demoras.

- O que quer saber é uma longa história, mas posso ser conciso. Trata-se de um espetáculo de sósias de escritores importantes que está numa digressão mundial. A América do Sul é o próximo destino e começa pelo Brasil.

E calou-se. Posso dizer que lhe tinha pedido uma explicação sucinta mas que não precisava de o ser tanto. Fiz-lhe mais algumas perguntas, às quais respondeu sem o poder de síntese anterior. Fiquei assim a compreender o que se passava neste navio: todos os escritores famosos com quem falara eram sósias e representavam determinados períodos da vida de cada um, de acordo com a parte que lhes cabia na peça. Quanto a Torga, passava-se o mesmo, representando a única personagem portuguesa.

- Espero que a sua parecença física com o Pessoa não os leve a despedirem-me e a contratá-lo. Não me faria isso, pois não?

Descansei-o, confirmando-lhe que o meu interesse estava para além da representação teatral e que a minha intenção era cumprir um desígnio nacional em vez de ser ator. Daí que estivesse a caminho do Brasil, onde pretendia absorver em sossego o Pessoa que existia em mim.

- Não me venha com aquelas histórias do V Império...

Garanti-lhe que Vicente Guedes não era mais o heterónimo que Fernando Pessoa criara e que abandonara em nome de outro que mais o seduzira. Este vinha para ficar e tinha a intenção de dar mais poesia e prosa ao mundo do que aquela que já lhe fora oferecida. Que achava mesmo que o Livro do Desassossego, de que em tempos fui autor, seria um pouco ensombrado com o que por aí vier quando eu me assumir. Tudo isto o ator Torga ouviu em silêncio.

- Vejo que está convencido do que quer, mesmo que me pareça estar a representar mais um papel na sua vida do que eu neste teatro.

Antes de continuarmos por outras conversas, disse-me que tinha no seu camarote um livro que me poderia interessar se desejasse saber mais sobre o verdadeiro Torga e a sua vida no Brasil. Pedi-lhe que fosse buscar quanto antes o tal livro pois a minha noite ia ser longa - a diversão de Beatriz era a razão - e gostaria de ter com que me distrair. Torga partiu em direção ao camarote e, enquanto estive só, fiquei a ver como o grupo de atores se divertia. Principalmente, interessava-me olhar para Marcel Proust e observar o seu comportamento. Havia alguma coisa que nos aproximava, talvez por ser aquele que mais tinha consciência do que representava o seu papel de ator fictício e do seu impacto junto dos passageiros. Já confirmara que toda a trupe era objeto de curiosidade entre os que viajavam e, ao mesmo tempo, que nem todos eles se preocupavam com o efeito que provocavam em quem reconhecia nos atores os seus escritores favoritos. Proust não era assim, nunca abandonava a personagem, pelo contrário confundia-se com o verdadeiro escritor em todos os gestos e poses. Enquanto o fazia, eu reparava mentalmente nos pormenores de um ator que pela sua perfeição parecia isolar-se dos restantes no palco da estranha atuação que me era dada a assistir.

Ao entrar no navio jamais imaginara que iria estar perante outras réplicas de escritores, numa situação em que as pessoas sem informação sobre o meu verdadeiro estatuto também me incluiriam como fazendo parte do referido grupo de artistas. Não fora por acaso que eu tinha sido incorporado naquele batalhão sem demoras e em que já não se fazia qualquer distinção entre o facto de eles estarem a ganhar a vida como profissionais e de eu ser a profissão. Talvez Marcel Proust entendesse esta minha duplicidade melhor do que ninguém, pois parecia encarnar o famoso escritor francês com um prazer que ia para além do simples ato de subir a um palco e debitar as deixas que algum argumentista lhe teria escrito. Não seria por acaso que se isolava no convés de uma festa em que os seus companheiros estavam empenhados e que o seu rosto mostrava encontrar-se a muitas milhas de distância. Por momentos passou-me pela cabeça que, se se esforçasse um pouco mais, o homem por trás deste Marcel Proust em navegação no meio do Oceano Atlântico, poderia roubar a identidade do verdadeiro. Até fui mais longe nesta hipótese, ao admitir que se houvesse possibilidade de alterar a perceção das pessoas sobre o ano em que estávamos, poderia reviver o papel sem que essa aventura pudesse ser posta em causa. Mesmo assim, pelo que observava, sabia que o meu companheiro não seria jamais capaz de ultrapassar o guião, coisa que a mim não me preocupava porque eu escrevia as minhas próprias deixas.

O regresso de Torga interrompeu a observação que eu executava como se fosse um detetive em busca do tempo perdido. O livro que ele trouxera, explicou, era um relato em que o escritor se autobiografara, mesmo que se assemelhasse a um romance escrito na primeira pessoa sobre um protagonista fictício. Considerava que pouco do que ali estava escrito deveria ser inventado, até porque a vida do escritor era suficiente para encher muitas páginas.

- Não sei se sabe, mas o Torga gostava muito de si. No seu Diário até tem uma entrada para o dia em que se soube da sua morte, onde escreve que ao saber da notícia abandonou o consultório e enfiou-se pelo meio da natureza para o chorar.

As palavras deste Torga provocaram-me um arrepio. Ele falava de mim como se eu estivesse morto, ignorando que até este dia só se conhecia a história de um único Homem que ressuscitara! Não era o meu caso, nem jamais o seria, mas foi nesse momento que entendi que haveria necessidade de criar uma separação entre o meu criador e a sua criatura quando aparecesse ao mundo. É claro, pensei, que o facto de me apresentar como Vicente Guedes retiraria uma parte ao problema e que a situação que provocaria o maior sobressalto seria a minha grande parecença física com o poeta. Essa era a grande novidade do meu ressurgimento, pois o criador e a criatura eram um mesmo corpo e não, como se verificaria daqui a uns meses, a formulação etérea de um heterónimo sem ossos nem carne, sem um olhar e uma sensibilidade e até com os tiques que o tornaria mais humano. Eu sei que pretendia ser Vicente Guedes, mas não abandonaria o meu corpo, em todo igual ao do poeta, ao que só faltara o bigode - que entretanto deixara crescer - para ser a sua cara chapada. E foi sobre estas questões de dupla personalidade que o livro trazido por Torga acabou por se tornar nos dias de viagem que se seguiram um guia de soluções e de respostas, já que o seu autor vivera toda a vida de adulto a combinar essas duas realidades e morrera entroncado entre a criatura e a criação, sem ser nem um nem outro.

Se estivesse em terra eu poderia acompanhar a maré subir e descer, mas no meio do oceano não nos apercebemos desse movimento. Talvez o mar tivesse subido uma dúzia de vezes e descido igual número, mas não foi essa a minha preocupação a partir da manhã que se seguiu. Preferi antes preocupar-me com as minhas dúvidas e partilhar a leitura do livro e as conversas com Marcel Proust nos seus tempos livres. Até porque Torga desaparecera após a madrugada, depois de me facultar o romance, provavelmente convencido de que pouco me tinha a explicar sobre os temas que eu lhe perguntara porque no volume que me dera estavam as respostas.

E havia algumas, designadamente no seu relato sobre a chegada ao Brasil, onde um tio o esperava e que, depois de o vestir com a dignidade necessária a uma criança vinda de uma terriola onde a pobreza era a normalidade, e de modo a poderem ser vistos em companhia um do outro, o entregou a um empregado para o levar até à casa onde iria morar. O percurso foi percorrido pelo tio num cavalo, com a justificação de que estava com pressa, e por ele e pelo empregado numa carroça puxada por bois. O condutor era tão negro como a noite que foi caindo e, quando o jovem se deparou com o silêncio da caminhada só cortado pelo chiar das rodas, começou a chorar. Fiquei a pensar como seriam justas as suas lágrimas, de tão novo e por estar distante do berço neste corte com a vida do passado. Afinal, abandonara a tal terriola transmontana por uma no interior do Rio de Janeiro, em tudo diferente.

Mais uma vez caíam-me nas mãos relatos em que se escrevia sobre cortes radicais na vida de uma pessoa e sobre ritos de passagem como os que se aproximavam a correr de mim. Coincidência ou não, o jovem do livro começara a escrever uns versos, ou seja, caíam-me nas mãos relatos sobre a minha futura atividade literária, de novo a lembrarem-me que havia uma missão a cumprir. Relatos que me diziam respeito também, já que Fernando Pessoa fora ainda muito jovem viver para a África do Sul, e lá suportara as mesmas dores de crescimento que o protagonista deste livro, onde também escrevera os seus versos e se preparara para outras criações poéticas. O que a leitura do livro ia fazendo nascer em mim era a sensação de que uma nova pele se sobrepunha à que me cobrira toda a vida. Talvez fosse do ar salgado, que branqueava a minha pele ao mesmo tempo que o sol do equador a ia avermelhando.

Essa mudança que em mim decorria em bom andamento lembrava-me os dois rapazes tímidos, sobre os quais ninguém poderia adivinhar situações que os tornariam tão diferentes da maioria. O miúdo Torga obrigara-se a crescer na fazenda do tio, mesmo que viesse com a disposição de voltar para se formar em Coimbra. Já o miúdo Pessoa perdera a hipótese de ganhar uma bolsa para estudar em Oxford porque a deram a um inglês, apesar de ter tido melhores notas, o que acabou por ser benéfico visto que o poeta optou pela língua portuguesa em vez de se lhe abrir uma porta para a inglesa. Isso fez-me pensar como eu ficara sem histórias para contar de quando eu era miúdo porque tivera uma vida escolar sem percalços. Não possuía recordações brasileiras ou sul-africanas para integrarem o meu currículo, nem pudera dar o destaque com que ambos conotavam certos pormenores obrigatórios nas biografias, mesmo que fossem situações que qualquer um que pudesse possuir. No caso do poeta, tivera a sorte de estar a viver em Durban no momento em que o futuro primeiro-ministro Winston Churchill foi vitoriosamente recebido após uma fuga espetacular da batalha onde exército britânico fora derrotado na Guerra dos Bóeres - deveria ter sido um entre as centenas de alunos que foram levados até ao cais para o vitoriar. Se não fosse a sua timidez, até poderia aparecer nas fotografias tiradas a Churchill e que foram publicadas no dia seguinte numa grande reportagem incluída na edição do jornal da cidade, o Natal Mercury. Jornal onde, mais tarde, o poeta veria impressos alguns dos seus primeiros versos e as charadas que tanto gostava de fazer a coberto dos primeiros heterónimos que criou, como o de Alexander Search. Ou a inspiração para o de Ricardo Reis que era, segundo a biografia física criada por Pessoa, "de um vago moreno mate", à semelhança de um seu professor hispano-irlandês da Durban High School.

A viagem marítima de Torga fora tudo menos agradável. Enjoara entre os passageiros da terceira classe do navio Arlanza, que esmoreciam perante o balanço do mar durante a maior parte dos dias. Enjoara também pelo terror que imaginava como certo para a sua próxima vida. Já quanto a Pessoa, o jovem que embarcara no Herzog, também fora sozinho. Mais uma coincidência entre ambos, só que o poeta não deixara rastos nas suas escritas sobre esta travessia até à África do Sul como o outro iria registar. O que teria pensado um rapaz tão novo durante os dias de viagem, ele que já escrevera alguns poemas, um deles sobre um naufrágio provocado por um ciclone?

Enquanto olhava para o que antigamente chamavam de mar oceano, porque nunca tinha um fim estivessem quantas horas estivessem a olhar para a sua imensidão, o que eu procurava eram estas respostas. Porque eu estava na mesma situação que um e outro - só que bem mais velho -, e esta viagem era o intervalo do filme em que eu seria o protagonista da segunda parte. Perguntava-me também se a ideia de ter posto um globo a rodar na Sociedade de Geografia para escolher aleatoriamente um lugar para onde ir teria sido boa?

Original fora, pelo menos, mesmo que eu não tivesse revelado até agora a verdadeira razão para o ter feito como vou fazer agora. Enquanto estava no Martinho da Arcada passou uma cigana que fez questão de me ler a sina. Primeiro pensei que queria ganhar dinheiro à custa da minha credulidade mas, imediatamente, me disse que nada cobraria e nem um tostão aceitaria mesmo que eu quisesse pagar. Avisei-a de que eu - o Fernando Pessoa - sabia fazer cartas astrológicas e que poderia ler o meu próprio futuro. Apenas sorriu, contrapondo que nunca ninguém saberia ler melhor um destino do que ela e que queria fazer-me esse favor. Era mais por mim que o fazia, que se via bem-estar necessitado de uma resposta, do que por ela, que tinha esta profissão como modo de vida e que podia ganhar dinheiro com outros em vez de trabalhar de graça como já dissera que iria acontecer.

- Deixe-me lá ler a sua mão e faça o que o destino lhe mandar.

O calor ia aumentando todos os dias e mostrava-me que nos aproximávamos do destino. Aliás, quem me fez pensar no assunto foi o escritor Proust nas suas conversas de convés, lugar do navio onde eu passava a maior parte do tempo. O camarote começara a sufocar-me de tão pequeno que era, principalmente quando abria a porta para a pequena varanda que dava para o mar e o ar quente entrava a toda a força. Adormecera algumas vezes nas espreguiçadeiras que estavam à disposição dos viajantes na proa do navio, após passar parte da noite a observar as estrelas e a pensar-me. Dera agora para filosofar sobre a existência futura cada vez com mais intensidade e gostava de o fazer naquela zona da embarcação, onde a brisa morna que subia do oceano se tornava mais fresca do que à popa. Marcel Proust vinha fazer-me companhia, contando histórias sobre a vida a bordo de que eu desistira. Até de Beatriz me revelava pormenores que eu desconhecia, já que apenas nos cruzáramos no camarote uma meia-dúzia de vezes. Nada que me preocupasse, pois sabia que ao chegar a hora de voltar a tomar conta de mim se apresentaria como a habitual fiel depositária da missão que lhe fora entregue por Sena.

As conversas com Marcel Proust eram muito interessantes e começaram a tomar um tom mais memorialista quando lhe perguntei se as experiências vividas por dois dos membros da trupe, T. S. Eliot e Ezra Pound, poderiam ser comparadas às que mudaram a estrutura cerebral de Pessoa. Afinal, tanto um poeta como o outro tinham sofrido um choque cultural devido à mudança geográfica e o mesmo se passara com Pessoa ao ter ido para Durban. Proust defendia-se sobre o tema, afirmando que do poeta português desconhecia quase tudo enquanto dos outros dois nada lhe interessava. Em contrapartida, confessava o prazer de recordar como a sua formação feita às custas de uma mãe que lhe abria os cordões à bolsa sempre que necessitava - "para além da avultada herança inesperada que recebi!" -, lhe permitira colecionar uma série de objetos que de outro modo lhe tornaria a vida insípida.

Sentia que quando Proust vinha até mim facilitava o descomprimir das minhas preocupações. Ou porque o francês tornava as conversas que eu pretendia sérias em considerações levianas, ou porque encaminhava-as para si como se fosse o dono das grandes preocupações do mundo. Foi o caso de quando lhe perguntei como é que o desejo de escrever surgia numa pessoa e ele conduziu a conversa para o seu problema de saúde, dizendo que descobrira muito cedo que tinha asma e que isso marcara toda a sua vida: "Uma criança que desde o momento em que nascera nunca se preocupara com o facto de o ar, que nos entra tão discretamente no peito que nem reparamos, é essencial à totalidade da vida." Enquanto o ar quente do trópico a sul nos cercava nestas conversas entre espreguiçadeiras bem posicionadas no convés do navio, ele ia contado como a doença lhe barrara o acesso às atividades na natureza de que tanto gostava, como quando ia ver o florir os espinheiros - detestava perder essa altura do ano! - e era obrigado a deslocar-se num carro hermeticamente selado. Só ao terminar o relato de todas estas situações pessoais é que retomara o tópico da minha pergunta, o de como nasce o desejo de escrever. No seu caso, e fazia então a ligação à doença sobre a qual estivera a perorar, a asma permitira-lhe ter o tempo necessário para se dedicar à escrita, mas fora após a morte da avó que percebeu uma das orientações fundamentais para o sucesso desta arte, após ter feito uma viagem muito cansativa: "Tinha acabado de apreender, na minha memória, de costas curvadas pela fadiga, o rosto terno, preocupado e desapontado da minha avó como estava naquela primeira noite da nossa chegada, não era o rosto daquela avó que eu tinha ficado espantado e com remorsos de ter sentido tão pouco a falta e que nada tinha em comum com ela exceto o nome, mas da minha avó verdadeira, da qual, pela primeira vez desde a tarde do seu ataque nos Champs Elysées, eu recapturava agora a realidade viva numa completa e involuntária lembrança." Ou seja, explicou-me pausadamente, que a nossa memória não mistura todos os acontecimentos no mesmo baú e que existem gavetas que só podem ser abertas por via de sensações não desejadas, como a que um aroma pode provocar. E foi ao confrontar-se com essa verdade da memória involuntária que percebeu que tinha um grande romance para escrever.

Estávamos nestas conversas quando me lembrou que era a última noite antes de chegar a terra e que a minha presença era exigida na mesa 24 do Salão Nobre. Não pude dizer-lhe que me apetecia pouco socializar.

O lugar na mesa ao lado de Beatriz estava vazio e à minha espera. Sempre estivera assim, disseram-me, mesmo que a minha ausência se tivesse repetido ao longo das noites. Sentei-me e conversámos os dois durante um bom bocado, como se não tivéssemos estado cada um pelo seu lado nesta travessia atlântica. Em seguida, ouvi os assuntos que se discutiam naquela mesa, que eram bastante frívolos mesmo que ali estivesse reunida a nata de uma sociedade de escritores, pensadores e poetas. Fiquei a ouvi-los durante a maior parte da refeição, sempre a reparar em como Beatriz apreciava aquele ambiente. Com toda a certeza que a viagem lhe correra de forma bastante satisfatória e que por ela continuaria com aquela trupe divertida. O único conviva que se mantinha tão sorumbático como eu era o meu vizinho sentado à esquerda, um amante da natureza, que se chamava Thoreau. Apesar de me ser difícil pô-lo a falar, lá consegui que me contasse o que fazia na vida, tendo ficado bastante surpreendido com o que me disse.

Com o fim da refeição, continuámos a conversa num passeio que terá somado uma dúzia de voltas ao convés, até que o convidei a sentar-se nas espreguiçadeiras que eu tinha adotado como lugar preferido no navio. Ele disse-me que um dos seus principais prazeres era o de caminhar e que esta digressão o impedia de fazer esses passeios a que estava tão acostumado e citou: "Tornei-me vizinho dos pássaros, não por ter aprisionado um, mas por me ter engaiolado perto deles. Prefiro o pântano mais lamacento ao mais belo jardim para as minhas caminhadas."

Que sujeito mais peculiar foi a minha reação ao seu discurso, feito sem preocupações no que respeita à minha reação. Este Thoreau, para além de desconhecer com quem estava a falar, pouco se preocupava com delicadezas. Dizia o que pensava e disse-o durante as várias horas em que estive a escutá-lo, no único e último momento que já existia para trocarmos opiniões sobre temas que jamais me preocuparam mas que me deixaram muito curioso face às suas formulações. Tanto que só regressei ao meu camarote a tempo de tomar um banho e fazer uma revista para confirmar que não deixávamos nada esquecido. Chegávamos ao destino e era hora de observar o fim do caminho marítimo que nos deixava ainda longe da terra que Beatriz apontara no globo - a Baía da Traição -, de cotovelos apoiados na amurada do navio.

Amanhã: chegada à Baía da Traição

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