A segunda vida de Fernando Pessoa: Dormir às escondidas na cama do poeta

E se Fernando Pessoa regressasse ao presente sob o heterónimo Vicente Guedes, aquele que foi preterido como autor do Livro do Desassossego para Bernardo Soares? Um romance inédito de João Céu e Silva que o DN está a publicar em 12 capítulos.

75 anos após a morte de Fernando Pessoa aparece um homem em tudo igual ao poeta na esplanada do Martinho da Arcada. Chama-se agora Vicente Guedes, um dos heterónimos do poeta, quer voltar a viver na sua antiga morada, onde agora está a Casa Fernando Pessoa, e assume-se como o seu herdeiro literário. Alguém o está a ensinar a ser Pessoa, recuperando os ensinamentos do poeta W.B. Yeats, de Ian Fleming e Somerset Maugham, três autores enganados pelo mago Aleister Crowley. Vicente Guedes sai do Freixo, com a incumbência de comprar certas peças no leilão do espólio deixado por Fernando Pessoa.

Um leilão e um espólio polémicos

Lembro-me que Sena me dissera estar a morrer e que essa foi uma das razões pelo qual eu aceitei este emprego - mas nunca o vi doente.

Lembro-me de me ter mandado escrever "A besta tinha 55 anos quando desembarcou em Lisboa" - mas nunca revelou quem era a verdadeira personagem sobre o qual tanto investigava.

Lembro-me de existir apenas uma única rua no Freixo - mas de jamais ter sentido falta de paisagem.

Lembro-me do prazer em descansar no gazebo - que era uma réplica do que George Washington construíra em Mount Vernon.

Lembro-me de copiar o Hino a Pã - e de o ter achado uma verdadeira alucinação poética-mística.

Lembro-me de como sofri até acostumar o corpo às molas soltas do colchão - que nunca foi mudado apesar de o ter solicitado.

Lembro-me da funcionária vir perguntar-me que tipo de mulher eu queria à minha disposição - e de ter optado por uma que tivesse bom físico.

Lembro-me de equacionar quem seria aquela jovem silenciosa que me guardava enquanto os dois viajavam - e de não ter tido uma resposta.

Lembro-me de ter tido vontade de fugir daquele sítio - mas de nunca o ter feito.

Lembrei-me de tantas coisas, que a viagem até à capital passou num instante e nem pensei em abrir o envelope para saber qual seria exatamente a missão de que estava encarregado. Sentir a liberdade envolver-me de novo, pode dizer-se, fez-me perder os sentidos.

O meu regresso à capital fez-me reencontrar com o mundo que deixara há uns bons meses. Principalmente, obrigou-me a constatar que estava sem teto pois cancelara o aluguer do apartamento onde vivia. A primeira pergunta que fiz quando pisei a estação final foi: onde é que iria habitar nos próximos tempos? Para encontrar uma resposta, sentei-me num dos bancos da gare ferroviária a pensar. Só então é que me lembrei do envelope selado com instruções... Abri a mala, retirei a carta do seu interior e escarafunchei o lacre para o quebrar. Estava suficientemente rígido para só se partir com uma pancada certeira numa das tábuas de madeira do banco.

Dentro do envelope encontravam-se várias cartas de tamanho menor, todas iguais umas às outras. Brancas também, com outros lacres a selar a intimidade de cada uma delas. Pensei que teria de quebrar os selos postos no verso para ordenar as várias cartas mas ao ver uma folha manuscrita a acompanhá-la, entendi que Sena tinha pensado em tudo. Na folha estava o meu nome, precedido de um Excelentíssimo Senhor Doutor; seguido de vários parágrafos de um texto orientador, onde existiam números que ordenavam a abertura de cada envelope com um determinado encandeamento. Por agora só deveria violar o que tinha escrito o número 1 - Sena escrevera a palavra "violar", não é de minha autoria - para saber como proceder.

Após ler o bilhete manuscrito, abri o primeiro envelope. Que indicava um nome a contactar e uma direção aonde me dirigir: o nome era Peres e a direção o Observatório Astronómico. Estavam tomadas por mim as decisões iniciais, face ao que abandonei a gare e entrei no primeiro táxi parado na fila que onde vários aguardavam pelos passageiros dos comboios. Disse ao motorista qual o endereço e lá parti, reconhecendo a cidade que fora minha até ao momento em que embarcara nesta aventura a soldo de Sena.

À minha espera não estava ninguém. Nem o senhor Peres, nem um substituto. Passados alguns minutos, o funcionário da recepção do Observatório Astronómico informou que dentro de alguns minutos o cientista viria ao meu encontro. Sorri-lhe e agradeci a rápida resolução do impasse, enquanto questionava quem seria o Peres. Cientista, era para já o primeiro dado da sua identidade que conhecia! Realmente, poucos minutos depois, o homem veio até mim. Sem pressa, pois coxeava e a idade não lhe permitiria andar mais depressa, como era fácil observar a cada passo que dava e que diminuía a distância entre nós. Senti a tentação de ir ao seu encontro mas, reparando na situação, o funcionário da recepção referiu em voz baixa para que eu esperasse onde estava.

- Bem-vindo! Não sabia quando chegaria e por isso esqueci-me de dizer ao rececionista que se poderia apresentar por aqui num destes dias. Peço-lhe desculpa pelo facto, mas estou certo que o recompensarei por esta falta. Siga-me, eu próprio o levarei aos seus aposentos.

Segui-o passo a passo, lentos, enquanto pensava que Peres poderia andar devagar mas na conversa era veloz. Não me tendo visto até esse momento, imediatamente me integrava no ambiente. De um modo bastante diferente do que era o seu amigo - e a funcionária -, que me tinha hospedado nos últimos tempos. Percorremos alguns corredores do Observatório Astronómico até chegarmos ao exterior do edifício, espaço no qual existia uma pequena casa. Peres apontou a sua bengala nessa direção e disse-me que poderia utilizá-la durante o tempo necessário à minha missão.

- Não tenha acanhamento, ponha-se à-vontade e como se estivesse na sua própria casa. É pequena, não tem cozinha mas possui uma casa de banho moderna. Quanto às refeições, faça como todos nós, use a cozinha do Observatório Astronómico. Se precisar da minha ajuda, não hesite em contactar-me.

A receção de Peres deixou-me "à-vontade", expressão que o cientista introduzira nas duas deixas da conversa que teve comigo. Enquanto ele se afastava, fiquei especado a olhar para a cúpula branca - e também um pouco suja - do Observatório Astronómico. Só tinha visto uma coisa destas em filmes e fotografias, nunca entrara numa pelo meu pé ou decisão própria. Realmente, a minha vida mudara bastante desde que aceitara este novo emprego!

Os meus dias confundiram-se uns com os outros durante um certo tempo. Peres tornara-se uma bem-disposta companhia, apesar da nossa grande diferença de idades e, talvez por ninguém ter paciência para o seu feitio, ganhei a sua preferência. Contou-me que tinha sido astrónomo a vida toda, numa época em que esta ciência dava grandes passos devido à evolução dos telescópios. A história que mais gostava de contar era a da sua tentativa de observar um eclipse do Sol ocorrido num dia 29 de maio no século passado. Nessa altura estava em África e fez todos os esforços para poder acompanhar uma expedição de um astrónomo britânico à ilha do Príncipe, que pretendia provar a veracidade da Teoria da Relatividade de Albert Einstein.

Como era muito didático, Peres questionou-me se eu conhecia esta lei da física, à qual disse sim, mesmo que não conseguisse dar uma resposta com mais substância do que reproduzir a famosa fórmula do e=mc2. Ele riu-se perante o meu esforço e logo deu início a uma aula: O Einstein concebeu a sua Teoria Especial da Relatividade no ano de 1905 mas levou mais uma década a resolver questões sobre gravidade e aceleração que não encaixavam na sua fórmula. Ele defendia que a luz nem sempre se propagava em linha reta e que devido a forças gravitacionais poderia ser curva, mas não tinha forma de provar essa teoria. Para se o fazer, Einstein adiantou três maneiras, uma das quais era observar as estrelas durante um eclipse solar. Aí, dizia, se a teoria estivesse correta a mesma estrela estaria em lugares diferentes se observada durante as fases clara e escura provocadas pelo eclipse, devido à força gravitacional do Sol.

Era aí que a sua própria história se cruzava com a de um colega inglês. Ao saber da expedição que este iria fazer com vista a provar a teoria de Einstein, quis também ir até ao local para a acompanhar, só que nunca obteve autorização dos seus superiores hierárquicos e ficou impossibilitado de realizar a viagem.

- O Arthur Eddington foi até à ilha do Príncipe com a sua equipa e fotografou o mesmo campo de estrelas antes, durante e depois do eclipse e confirmou que a sua posição se alterara, tal como o físico previra. Só em 1960 é que uma nova experiência voltou a confirmar a teoria de Einstein.

O meu interesse pelo tema foi tão grande que Peres emprestou-me um livro do astrónomo britânico e uma pasta com dados biográficos da expedição à ilha do Príncipe que contava os pormenores não científicos. Estes de pouco lhe interessavam, mas a mim despertaram curiosidade: que uma cratera da Lua recebera o seu nome, tal como o asteroide 2761 Eddington; que popularizou algum dos acontecimentos em livros menos científicos e que gostava de espicaçar os leitores com frases como esta: se um exército de macacos soubesse datilografar, poderiam escrever todos os livros da biblioteca do Museu Britânico. Também havia uma brincadeira nestes documentos, esta de Einstein a responder a um jornalista sobre como teria sido a sua reação ao facto de a expedição poder antes ter provado que a sua teoria estava errada: "Então, Deus estaria enganado!"

Mas o que mais me interessou foi mesmo o relato da expedição para confirmar a Teoria da Relatividade. Como o céu estava meio encoberto e a manhã chuvosa na ilha, a equipa do astrónomo teve alguma dificuldade em registar tudo o que desejava: A chuva parou entre o meio-dia e as 13.30 e observámos uma parte do Sol. Tirámos as fotografias na esperança de que corresse bem. Nem vi o eclipse, tão ocupado estava a mudar as chapas, exceto num breve olhar para confirmar que o eclipse começara e que era visível por entre as nuvens. Tirámos dezasseis fotografias. Estão perfeitas na reprodução do Sol, mostrando uma boa clareza, mesmo que uma nuvem tenha interferido com a captura das estrelas. As últimas fotografias mostram uma série de imagens que espero nos deem as provas necessárias... No entanto, uma segunda equipa encontrava-se na América do Sul, onde as condições da meteorologia eram magníficas e puderam ser fotografadas todas as fases do eclipse e obter as duplas imagens do campo de estrelas diurno e noturno que provavam a existência de uma deflexão da luz em 1,98". Mais tarde, o próprio astrónomo desenvolveu a sua teoria sobre a estrutura interna das estrelas e criou uma série de coincidências matemáticas sobre o universo, que revelavam o seu espírito místico para além do científico.

Andei assim distraído durante alguns dias até que o rececionista alertou para o facto de estar na hora de abrir o segundo envelope. Nunca mais me lembrara da missão de que Sena me encarregara! Regressei à casa onde estava hospedado e peguei no envelope número 2. Abri-o e li atentamente as instruções. Felizmente, estava a tempo de as cumprir antes de a data ser ultrapassada - o dia seguinte - e foi assim que entendi que o meu anfitrião mantinha o seu interesse em Fernando Pessoa. Tal como estava escrito no bilhete, telefonei para os descendentes do poeta e pedi que me recebessem o mais rápido possível. A sobrinha, era esse o grau de parentesco, questionou-me sobre as minhas razões e expliquei-lhe que preferia comunicar-lhas pessoalmente, situação que lhe provocou um trocadilho:

- Claro, se quer falar de Pessoa deverá fazê-lo pessoalmente...

Fiquei surpreso pela sua galhofa e contra-ataquei com a marcação da hora. Se poderia ser logo de manhã? Concordou, dando-me a morada e aconselhando tocar um pouco mais do que seria normal pois nem sempre o botão da campainha funcionava na perfeição. Apesar de ter andado distraído durante dias, o facto de ter sido o rececionista a lembrar-me da abertura do segundo envelope não me passou despercebido. Era o sinal de que o braço de Sena pairava sobre mim, mesmo que a esta distância do Freixo...

Na manhã seguinte, à hora marcada, lá toquei demoradamente à campainha. Em poucos segundos a porta de entrada do prédio foi aberta, tendo subido até ao andar indicado pela sobrinha do poeta. Enquanto percorria a altura do poço do elevador, ia crescendo em mim a emoção por estar a chegar mais perto do que nunca ao reino mais privado do poeta sobre quem Sena tanto me havia ditado. Finalmente, iria conhecer parte do seu mundo, mesmo que muitas décadas após a sua morte. Era a primeira vez que tal acontecia e, suspeitava, que também deveria ser a última. Afinal, na folha de instruções escrita pela mão de Sena, pressentia-se no seu tom que a tarefa a executar não era fácil nem, talvez, do interesse dos descendentes.

A sobrinha recebeu-me educadamente, levando-me para uma sala incaracterística e onde, a não ser uma foto do tio, pouco mais o assinalava. De qualquer modo não tive muito tempo para reparar em pormenores pessoanos, tanto pelos nervos que me afetavam como pela rápida pergunta da senhora sobre o objetivo da minha visita. Contei-lhe, então, que estava interessado em adquirir dois bens do poeta que pertenciam - até ao momento - aos seus descendentes. Não referi que representava Sena, a conselho do próprio, mas antes que era eu o interessado.

- Sabe... Recebi-o por uma questão de educação e porque me pareceu uma pessoa honesta na breve conversa que tivemos ao telefone... No entanto, quanto ao seu desejo de pouco lhe posso valer porque o que pretende consta de um lote já entregue a uma leiloeira para ser vendido... Terá que fazer como os restantes interessados...

Mais rápida a pôr-me fora de casa não poderia ter sido. Não é que se tivesse levantado após a longa resposta, entrecortada por algumas hesitações, apenas colocara um ponto final nas minhas pretensões. Mesmo assim disse-lhe que poderíamos chegar a um entendimento que interessasse a ambos e que pagaria o que pudesse vir a ser oferecido no referido leilão.

- Não... Isso não pode ser assim porque já me comprometi... Além de que esses dois artigos são os que mais poderão chamar clientes ao leilão... Serão eles o chamariz para as restantes peças do lote... Não seria uma boa ideia... Recomendo-lhe que faça como os outros interessados e as licite... E, se como diz, pode pagar o melhor preço, não lhe será difícil ficar com aquilo que deseja...

Foi fácil compreender que não iria demover a sobrinha. Levantei-me e despedi-me, avisando-a de que lhe voltaria a telefonar. Tive, no entanto, que me voltar a sentar. A sobrinha permanecera sentada e não parecia interessada na minha saída imediata. Não entendi logo o porquê desse comportamento, mas as perguntas que fez questão de me colocar enquanto servia um matinal café forte mostravam que estava interessada em conhecer melhor os meus propósitos. Também, rapidamente, compreendi que não iria mudar de opinião, mesmo que tivesse sido a própria a encetar uma conversa inesperada sobre o poeta.

- Sabe... Até gostaria de nada vender deste património que me foi legado... No entanto, ao longo de muitos e muitos anos tenho feito tudo o que está ao meu alcance para o manter unido e manifestado o desejo de o transferir para a guarda das autoridades competentes... O Estado, ou posso antes dizer, os sucessivos organismos que me têm contactado nunca conseguiram propor-me outra situação além de lhes oferecer todo o espólio de forma gratuita... Aliás, ao longo de décadas tenho facultado tudo o que me têm pedido... Deixado consultar... Cedido para exposições e eventos, mas nunca alguém tomou a atitude correta... E honesta, como a de negociar com os descendentes... Vejo-me, portanto, na obrigação de ser eu a resolver o caso antes de o meu fim chegar e o problema ser colocado a quem não deve ter a ver com a questão... Está a compreender?

Após este sermão, não lhe poderia dizer outra coisa senão que era dona da razão. Voltei a afirmar o meu interesse e que o preço que estaria disposto a pagar a compensaria destes incómodos que duravam há anos. Ela sorriu e voltou a falar.

- Quanto à sua proposta, agradeço-a mas não vale a pena voltar a falar dela... Está decidido deste modo e não voltarei atrás... São muitos anos a tomar conta das coisas do meu tio e é necessário encontrar uma solução definitiva... Esta foi aquela a que me obrigaram... Também gostaria que fosse de outra maneira, mas já não me iludo com promessas... Acho que não terá problema em conseguir o que deseja no leilão... Estou certa disso...

Voltou a oferecer-me mais uma chávena do matinal café forte e, em seguida, pediu-me que a acompanhasse a uma outra divisão da casa.

- Está aqui uma das peças que pretende comprar... Em perfeito estado de conservação... Tenho tido todo o cuidado na sua preservação, como pode ver... Quanto ao documento, esse está por aí...

Desci no elevador até ao rés-do-chão e encaminhei-me para a rua. Queria pensar na situação em que me encontrava e fazer o seu ponto. Dirigi-me para o jardim que se avistava da porta do prédio e procurei um banco para me sentar. A seguir, retirei a folha manuscrita de Sena com as instruções para a missão e li a que se seguiria. A solução era simples, se a proposta incluída no segundo envelope não fosse aceite, passaria ao terceiro passo, descrito na carta número 3. Como não a tinha comigo, fiquei a imaginar o que teria a fazer em seguida. Não valia a pena tentar adivinhar porque, se até aqui nunca conseguira prever os desejos de Sena, dificilmente seria desta vez.

Fui até ao quiosque em frente e comprei o jornal. Não tinha pressa e pus-me a esquadrinhá-lo página a página e artigo a artigo para ocupar o tempo. Não estava com vontade de regressar já ao Observatório Astronómico, nem de passear ou fazer qualquer outra coisa. Ler seria o melhor remédio e foi o que fiz. Coincidência das coincidências, o jornal continha um artigo que retomava o tema do leilão a que a sobrinha se referira na nossa conversa, só que com um teor de polémica que ela não revelara. Dizia o artigo que estava já marcada a data para o leilão do espólio do poeta e que existia uma tentativa para impedir a sua realização. Recordei que lera em tempos um artigo sobre este mesmo assunto, facto que me provocou mais curiosidade ainda. Continuei a ler a notícia e entendi que a polémica crescera, pois desta vez o lote incluía documentos considerados fundamentais para a história de Pessoa. Foi após esta leitura que entendi melhor qual seria a minha missão! No leilão iriam estar textos que relatavam o conhecimento entre o poeta e a Besta, e não eram poucos: uma pasta contendo toda a troca de correspondência entre ambos e o manuscrito da novela policial que Pessoa escrevera baseado no alegado desaparecimento de a Besta na Boca do Inferno. No artigo fazia-se ainda um aviso, de que estes documentos eram facilmente vendáveis para o estrangeiro, destino da maioria dos objetos que a empresa costumava leiloar; também que em tempos o sobrinho do poeta editara um livro com a reprodução da maior parte do texto da referida novela policial...

Tentei continuar a ler o jornal, mas a notícia sobre o leilão de mais uma parte do espólio de Pessoa não me deixava prestar atenção. Antes, contudo, havia duas coisas que eu precisava de fazer imediatamente: comprar o livro referido na notícia e abrir o terceiro envelope. Por esta ordem mesmo.

A busca pelo livro foi infrutífera, apesar de ter visitado várias livrarias. Numa delas, indicaram-me um alfarrabista onde talvez pudesse encontrar o volume organizado pelo sobrinho do poeta. Fui até à morada indicada, mas não o consegui adquirir porque a loja estava fechada. Ainda pensei que era a hora do almoço mas, ao ler um pequeno recorte de papel preto preso num canto da porta, verifiquei que também não valeria a pena esperar. Era o anúncio necrológico da morte do proprietário, com data de mais de há um ano. Ao olhar para os livros expostos na montra, confirmei que este seria o alfarrabista certo pois lá estava o que eu tanto queria ler. A capa estava amarelecida pelos raios solares, mas via-se bem o grafismo com os rostos do poeta e de a Besta, um virado para cima e o outro para baixo. Fui ao alfarrabista mais próximo - naquela rua existiam vários - e perguntei-lhe se teria o livro. A resposta foi imediata: não. Ainda disse que não valia a pena procurar tal volume porque o único local onde poderia encontrá-lo seria no estabelecimento do lojista morto.

Quis caminhar um pouco para me distrair e reconhecer a cidade de onde me ausentara há alguns meses. Dei uma volta pelo jardim, desci a avenida para a parte baixa da capital e fui observando com curiosidade as lojas e as pessoas enquanto andava. Não estava muito diferente da cidade que eu tão bem conhecia, mesmo que o tempo passado fora me proporcionasse um olhar de maior distância em relação à pessoa que eu já fora. Não tinha dúvidas que era alguém que chegara diferente do que partira! Caminhei até não poder mais. Quanto mais não fosse porque o sapato do pé direito me magoava o suficiente para não poder continuar a marcha. Parei para ver o que me fazia doer o pé e descobri que a parte interior da sola estava a desfazer-se de velha. Pensei que com todo o dinheiro que acumulava no meu novo emprego bem poderia comprar um novo par de sapatos sem prejudicar a poupança mensal. Pela primeira vez na minha vida tinha dinheiro para gastar! Entrava naquela fase de maturidade em que o saldo das despesas era inferior ao das receitas e tudo isto se devia a Sena. Ou seja, deveria comportar-me corretamente para não regredir até à que fora a minha situação anterior. A solução era simples, submeter-me de forma disciplinada às suas ordens e manter-me-ia à tona da água a nível financeiro. Ainda por cima, se cumprisse esta missão, decerto seria premiado com o velho Chrysler e, então, estaria à beira de o poder trocar por uma bela soma de dinheiro. Para além do seu valor histórico, seria com toda a certeza o tipo de automóvel que qualquer colecionador desejaria ter entre os seus devaneios.

O sapato estragado nada mais era do que uma chamada de atenção para a minha situação pessoal, poderia até considerá-lo como um aviso para o modo como me deveria comportar e o tipo de conduta a manter. Mesmo tendo dinheiro para comprar outros sapatos, deveria resistir a supérfluos até ao fim do contrato e, nessa altura, poderia fazer a despesa. Continuei o passeio por mais algumas ruas, coxeando ligeiramente do pé direito, enquanto não fiquei suficientemente cansado para regressar e confirmar o terceiro passo da minha missão. No entretanto, ia pensando se deveria ou não voltar a falar a sobrinha, de forma a poder ganhar alguns pontos perante a opinião de Sena...

Estava a fazer-se noite e sentia já alguma fome. Fui até à cozinha do Observatório Astronómico na esperança de me cruzar com Peres mas tive azar. Ele tinha-se sentido indisposto e fora para casa mais cedo. Em sua substituição, estava nessa noite um astrónomo muito mais novo, que fez questão de entabular conversa comigo. Talvez para ocupar o tempo enquanto não caía a noite e tivesse trabalho para fazer!

- Sabe que o Peres escreveu um dos primeiros tratados científicos sobre a Teoria da Relatividade do Einstein?

Disparou aquela informação sem mais nem menos, que era ao mesmo tempo uma pergunta, quase fazendo com que eu deixasse cair no chão o ovo que ia estrelar. Baixei a chama do bico do fogão que estava a utilizar e respondi-lhe - possuído por alguma curiosidade - com um simples "Ai sim?"

- Ele tem o manuscrito guardado há décadas numa gaveta da sua secretária. Nunca o publicou, apesar de que o que escreveu na época sobre o assunto ser bastante inovador.

O astrónomo informou-me que já perguntara várias vezes a Peres porque nunca o fizera e que este sempre evitara responder à questão. O máximo que lhe tinha arrancado é que no momento em que o estava a escrever fora publicado um livro semelhante e que, quando estava a terminar, o mesmo autor voltara a publicar um novo trabalho, situação que o forçara a desistir do seu.

- Já não era oportuno, foi a única justificação que me deu!

Afinal, apesar de todas as minhas conversas com Peres, pouco ficara a conhecer da sua história pessoal. Acabada a refeição, o astrónomo convidou-me a passar a noite na cúpula com ele e a acompanhá-lo nas observações que estavam programadas. Rapidamente disse que sim, porque - usando uma metáfora que me parecia desapropriada - apesar de estar no centro do vulcão ainda não tinha visto a erupção acontecer!

Este colega de Peres era um astrónomo interessado na grandes questões sobre o universo e, desde o início, que desejou testar os meus conhecimentos sobre a matéria. Confesso que as questões do Big-bang, da expansão do universo, do busão de Higgs, da Teoria das Supercordas, entre muitos outros conceitos que ia trazendo à conversa, não me eram totalmente desconhecidos. Já lera o suficiente e vira programas de conteúdo científico na televisão - em noites de insónia - para conseguir acompanhá-lo numa conversa como a que queria manter comigo durante essa noite. Desde cedo compreendi que existia um mal-entendido no que respeitava à minha pessoa pois pensava que eu era desta área de estudos e que estaria ali a estagiar. Não desfiz essa impressão porque não sabia o modo como Peres me tinha posto no interior das fronteiras do Observatório Astronómico, podendo deixá-lo ficar mal se se descobrisse que a minha missão era a de comprar partes do espólio de Pessoa em vez de adquirir conhecimento científico.

É certo que o poeta também fora muito dado às estrelas, mesmo que sob o aspeto astrológico. E fora-o com grande mestria, praticando para se conhecer a si próprio, aos heterónimos e a outros ao longo de grande parte da sua vida. Nos muitos textos que deixou como legado, existem aproximadamente trinta mil sobre este tema, facto que um estudioso desta sua arte referira como sendo um dos traços da personalidade do signo Gémeos. Encontrara esse conhecimento num estudo sobre o poeta e a astrologia que estava entre os livros de uma pilha pousados sobre a mesa de trabalho de Peres. Que ele mesmo me aconselhara a folhear pois teria coisas - foi a expressão que utilizou - muito curiosas. Não terá sido por acaso que Peres terá feito este aconselhamento, desconfiava, porque tudo o que tivesse a ver com Pessoa parecia ter sempre uma origem na recôndita povoação do Freixo.

Uma das teses interessantes era a de que o poeta se dedicara com afinco ao estudo da astrologia também para ter a perceção da dimensão da sua própria vida. São muitos os cálculos astrológicos que fez para determinar a data da sua própria morte e até acabou por assassinar o seu heterónimo Alberto Caeiro para a confirmar. Aliás, os seus heterónimos pertenciam cada um a uma das casas do horóscopo, sendo o próprio Pessoa Água; Caeiro Fogo; Álvaro de Campos Terra, e Ricardo Reis Ar. Sob um outro pseudónimo, o de Raphael Baldaya, foi ainda autor de muitos trabalhos astrológicos e até fez propostas para uma nova teoria dos períodos astrológicos.

A rotina noturna tinha do astrónomo sido alterada para cumprir uma missão cujo objetivo era o de encontrar meteoritos cuja rota pudesse ser de colisão com o nosso planeta. Explicou que esta não era a tarefa habitual do Observatório Astronómico mas que a recente queda de um meteorito na Antártida os obrigara a participar numa colaboração externa por um determinado período de tempo nesta busca. Era uma fase em que os observatórios que participavam do projeto esquadrinhavam uma ínfima parte de alguns milhões dos quilómetros quadrados durante um mês, período após o qual voltariam às suas tarefas normais.

- Peres não concordou com esta colaboração a nível global por achar que é uma perda de tempo e que não nos competia, mas como recebeu instruções específicas nesse sentido por parte de quem nos paga o salário não teve outra solução a não ser justificar a sua ausência por motivos de doença.

O astrónomo, no entanto, não parecia preocupado com esta situação e até se divertia com a localização de meteoritos que lhe estava atribuída. Foi assim que observei alguns destes corpos que percorrem o universo como uma nitidez que de outro modo me seria impossível ver. Quando lhe perguntei o que queria dizer com a recente queda do meteorito - uma semana? -, ele rira-se e respondera que a palavra "recente" significava 11 mil anos antes de Cristo, mas que a sua descoberta só se dera há duas décadas. Como o meteorito trazia marcas de hipotéticas formas de vida em Marte de há três mil milhões de anos, decidira-se estudá-lo com muita atenção.

- É claro que muitos cientistas não acreditam que essas marcas de uma provável vida em Marte sejam verdadeiras - podem resultar de outros fenómenos! - mas como é das melhores provas que temos, a comunidade científica ainda não desistiu do asteroide ALH84001.

Coloquei-lhe, então, a minha grande pergunta: se estamos sós no universo? Ele retirou o olho do monóculo do telescópio, virou o rosto para mim e riu-se, acrescentando que essa é a pergunta de um milhão de dólares! Mas, após pensar um pouco, respondeu.

- Acredito que sim. Dificilmente teremos companhia neste imenso universo e, a existir, está a uma distância tão gigantesca que a nossa solidão se manterá eterna.

Depois desta afirmação estranhamente perentória para um cientista, o astrónomo voltou à observação do espaço e eu fiquei a vogar como um pequeno meteorito na minha ignorância. Enquanto ele esquadrinhava o espaço, eu pensava no astrólogo Fernando Pessoa a desenhar os seus mapas celestiais para as muitas cartas astrológicas que fez. O observatório tinha um telescópio com uma potência que os seus antecessores jamais imaginariam ser possível existir para realizar estes estudos, tal como os astrólogos contemporâneos possuíam tecnologia para dar a conhecer os desígnios do zodíaco com uma facilidade muito superior aos que os antecederam.

Ao olhar para a dedicação integral do astrónomo no que estava a fazer, comparava este seu estado com o do poeta. Que conjugava o estudo da astrologia com anotações nas mesmas folhas de papel onde estavam escritas frases ou versos que lhe vinham à inspiração. Ou mesmo observações sobre o seu lado esotérico, como aquelas que fizeram com que a própria Besta viesse fisicamente ao seu encontro. Pessoa escrevera até uma carta ao editor de uma revista inglesa em que se comparara a Shakespeare e a Francis Bacon na capacidade de escrever de modos diferentes para uma única pessoa: "Eu possuo essa característica, sou um autor que sempre considerou ser impossível escrever segundo a sua própria personalidade; tenho assumido, consciente ou inconscientemente, a personalidade de alguém que não existe, através do qual em conformidade escrevo".

O astrónomo, após o que me revelara sobre a sua posição em relação ao Homem e ao universo, também me parecia deslocado no que estava a fazer esta noite. É certo que ele fora muito claro no que respeita a cumprir as obrigações porque só assim receberia o ordenado ao fim do mês, mas decerto teria outros interesses no seu trabalho científico. Tais como os que revelara antes daquela minha pergunta fatal para a nossa conversa - sobre se estamos sós no mundo -, como era o caso da noção de assimetria do universo; o que se passara naquele 0,000000000001 de segundo depois de se ter dado o Bang, bem como a sua razão de ser. Nesta última situação, recorrera à resposta que o matemático Laplace dera a Napoleão sobre o papel de Deus nesta criação: "Majestade, não tenho necessidade dessa hipótese".

Eu estava perante um viajante das estrelas que, tal como o próprio universo, ainda estava num período de expansão de perguntas e respostas para o seu saber. Só desejei é que, ao contrário de Peres, não guardasse os seus estudos numa gaveta só porque outros publicavam livros sobre o mesmo tema.

A noite passada com o astrónomo e o interesse de Pessoa em Shakespeare fizeram-me voltar ao livro do cientista britânico que medira os campos de estrelas durante o eclipse de 19 de maio. Porque na frase impressa na página inicial do volume estava, por coincidência, uma frase do mais famoso escritor inglês, que tanto interessara ao poeta português, e que dizia: "Senhores, vou-vos contar maravilhas... Mas não me perguntem quais são elas". Também no prefácio, Eddington fizera afirmações que o astrónomo repetira como suas mas que já preocupavam estes cientistas desde o início do século XX: Adoto esta maneira de ver neste momento da atualidade, e que é admissível numa espécie de ensaio, de que o universo material das estrelas e das galáxias estelares se dispersam em conjunto. Mas esta perceção, não a vejo como um fim em si próprio. Na linguagem policial, ela seria a pista e não o criminoso. A "mão misteriosa" da minha história, é a constante cósmica.

É claro que ao ler e ouvir tanta informação sobre temas que não me diziam respeito, nem eram os principais que me preocupavam na vida, como estava a acontecer desde que dera início ao contrato com Sena, senti-me um pouco perdido face ao meu próprio lugar no planeta. Desci à Terra com o anúncio definitivo da realização do leilão do espólio de Fernando Pessoa. Soubera da data através das notícias dos jornais porque a polémica continuava acesa e a crítica à venda de documentos era cada vez maior. Se por um lado, os descendentes do poeta mantinham a sua decisão e a leiloeira não desmarcava a sessão, por outro, surgia uma contestação organizada contra a venda dos pertences do poeta. Este debate nos jornais era diário e deveria manter-se assim até que se realizasse o leilão, situação que me preocupava pois preferiria participar nele de uma forma discreta. As peças que Sena mandara comprar eram importantes e, mal as arrematasse, deveria ser pasto de perguntas dos jornalistas que estivessem a fazer a cobertura do evento.

Discrição era uma realidade com que não deveria contar, mas era aquela que o meu anfitrião desejava que existisse na minha conduta. Soube-o, quando abri o quarto envelope, onde estavam instruções muito precisas quanto ao meu comportamento no leilão. A primeira era a de adquirir logo que possível o catálogo oficial para me familiarizar com o número dos lotes que pretendia arrematar. Para tal, estavam dentro do envelope fotografias da peça e do dossier que interessava adquirir. A segunda, remetia para o meu comportamento. Nem uma palavra antes, durante ou depois. Apresentar-me de fato e gravata para não levantar suspeitas de credibilidade financeira. Retirar-me logo que licitasse e fornecesse o nome aos responsáveis da firma.

O próximo envelope, o quinto só deveria ser aberto após o leilão. Assim sendo, ainda tinha cerca de três semanas livres até à noite em que se realizaria a sessão.

Certamente, Sena não confiava na minha capacidade para cumprir a missão. Foi essa a razão em que pensei como sendo a mais válida quando o reencontrei inesperadamente no Observatório Astronómico. Se soubesse de antemão que o meu anfitrião estaria ali, teria entendido o semblante do porteiro ao dizer-me bem-vindo. Havia no seu olhar uma certa dependência para com o patrão, apesar de Sena não pertencer à mobília administrativa da instituição.

Estava deitado na minha cama, sonolento, mas desperto o suficiente para se aperceber da minha entrada no quarto. Decidira vir até à capital acompanhar de perto a operação montada para adquirir no leilão as coisas que queria de Fernando Pessoa.

- Confio em si, pode acreditar, mas não me sentia bem em o soltar às feras sozinho.

Ainda acrescentou um "por isso cá estou", a justificar a sua presença inesperada, enquanto explicava que não iria partilhar o quarto comigo.

- Quanto menos formos vistos juntos melhor.

Ainda acrescentou que pensava mais além nesta questão e que não deveríamos mesmo ser vistos juntos fosse em que situação fosse.

- Ninguém deverá ser capaz de nos ligar um ao outro!

Estive quase para lhe dizer "que grande mistério" mas, pelo que já conhecia da personalidade de Sena, achei por bem não fazer este tipo de afirmações. Não gostava de intimidades, nem que lhe respondessem, preferindo ser sempre o autor da última frase da conversa. Informou-me que no dia seguinte aconteceria a abertura do leilão e que durante dois dias se podia observar o que estava em licitação. Explicou-me que iria ele próprio visitar o salão e tomar nota dos números das peças que eu deveria comprar três dias depois para que não houvesse engano, certificando-se de que o seu número corresponderia aos que estavam impressos no catálogo oficial. Vendo a minha surpresa perante a sua anunciada visita ao local do leilão, esclareceu-me.

- Não pense que me vão descobrir, irei bem disfarçado!

Adormeci a pensar qual seria o traje com que Sena iria antever os bens do poeta que desejava para si, coisa que não deveria ter feito pois dificultou-me o sono, tais eram as hipóteses que se me colocavam. Ao despertar, o primeiro pensamento foi novamente para a indumentária de Sena. Usaria um bigode falso? Coxearia para disfarçar? Levaria uma gabardina? Um chapéu enterrado pela cabeça a baixo? Iria vestido de mulher? Tudo era possível acontecer com alguém que não aceitaria perder sob qualquer hipótese a posse destas peças à venda. Sabedor da situação, aprontei-me rapidamente para poder assistir à entrada de Sena no salão. Era-me imperdível esse momento! Ainda ponderei se deveria disfarçar-me também, mas decidi não o fazer pois faltar-me-ia a justificação para este ato e até poderia ser entendido como uma brincadeira de mau gosto pelo meu anfitrião.

Sena entrou discretamente, impossível de ser reconhecido até pelos mais atentos. E havia várias pessoas que estavam alerta para este tipo de situações naquele salão onde ele se movimentava em passos lentos mas decididos. Começou por dar uma volta à divisão onde estava exposta a parte principal das peças do lote à venda e deteve-se, só por instantes, perto das que lhe interessava. Quem olhasse para o seu disfarce de burguês muito bem-posto num fato cinzento claro jamais o identificaria como o futuro dono da parte mais importante em causa naquele leilão.

Mantive-me sempre por perto e, por várias vezes, cruzámo-nos nas voltas ao redor do material que outrora pertencera a Pessoa. Havia de tudo dentro das estantes de vidro que facilitavam a apreciação e, ao mesmo tempo, também as isolavam de qualquer contacto. Quando um pretendente estava mais interessado numa das peças, mesmo que só se notasse por um olhar mais prolongado, surgia imediatamente um funcionário que se oferecia para dar explicações. Sena, que observara atentamente os seus interesses, nunca sofreu uma dessas aproximações, o que provava uma conduta inteligente no reconhecimento que efetuava. Até utilizava, como parte do disfarce, aqueles tiques próprios de quem observa o produto no seu global e muito pouco no seu particular, ora cofiando o bigode postiço farfalhudo, ora folheando o catálogo de costas para a peça em causa. Era um mestre do disfarce, tão especialista que ponderei até que ponto eu não fora vigiado por ele sem me aperceber.

Reconhecera-o facilmente entre tanta gente porque sabia que iria estar ali, de outro modo passaria por ele sem o saber. O único toque de vestuário que o poderia denunciar era o uso de um laço em vez de uma gravata, uma vez que mais ninguém usava um adereço desses! Mas, ao longo do dia, decerto que outros apareceriam assim, ou não fizesse aquela clientela um género muito próprio. O meu anfitrião ainda demorou umas boas duas horas naquele seu passeio em torno das peças, disfarçando sempre bem o grande interesse e, provavelmente, o prazer antecipado quanto ao que iria adquirir

No momento em que se preparava para partir, houve um rebuliço que o fez ficar um pouco mais. Tratava-se do anúncio de um esclarecimento sobre o Lote 21, relativamente ao qual o funcionário informou os presentes que iria ser retirado do leilão. Ainda perguntaram ao responsável da empresa a razão, mas este não respondeu a nenhum dos que o interrogavam, apenas abriu a portinhola do escaparate e pegou na contracapa de um livro. Ao meu lado, duas pessoas comentaram a razão: que estaria a ser disputada pela Câmara de Lisboa, que teria anteriormente comprado o resto do volume para o acervo da Casa Fernando Pessoa. Sena observou de longe o pequeno momento de confusão e, terminado o espetáculo, partiu.

Eu fiquei mais umas horas, depreendendo que era esse o seu desejo por um olhar que me fez. Curioso com o facto daquela retirada de parte do espólio se verificar mesmo em cima da hora, decidi intrometer-me na conversa entre dois prováveis interessados que pouco antes me tinham esclarecido sobre o mistério da ausência da contracapa no pregão e perguntei-lhes sem rodeios se iria haver mais alguma polémica. Tinha algum receio em dar nas vistas com esta pergunta mas tal não aconteceu, pelo contrário, os dois homens fizeram questão de me explicar muito do que se estava a passar nos bastidores deste leilão. Um deles começou por referir que os sobrinhos do poeta estavam em conflito com as autoridades, que consideravam que eles não tinham direito de se desfazer de tantos bens do antepassado e que estes deveriam ser oferecidos à casa que honrava a memória de Pessoa. Após esta introdução, entendi que o outro senhor tinha uma posição contrária porque contrapunha haver sempre gente interessada em se beneficiar do espólio, uma situação já com décadas, e que a família também teria os seus direitos sobre esta propriedade. O primeiro replicou que o correto era fazer como nos anos 80, quando negociaram diretamente com a Câmara; ao que o segundo respondeu que seria bem mais difícil pois o Estado estava há muito tempo despreocupado com o que ainda restava em posse dos sobrinhos e que estes teriam feito vários avisos sobre a sua intenção de vender o património. Para explicar melhor a sua tese, o segundo ainda lembrou que no anterior leilão já tinha havido bronca com a capa do livro As Doutrinas Anarquistas e garantiu que teria bastado um pequeno sinal do Estado para que tivesse sido retirado do leilão e em vez de terem posto uma providência cautelar para inviabilizar o negócio...

Achei que se desejava - e deveria - saber algo mais sobre estas polémicas era o momento certo, pois estava perante dois especialistas que defendiam posições extremadas. Não foi preciso fazer-me de ignorante porque, na realidade, desconhecia estas particularidades - para além das notícias que lera - que há meses acompanhavam os leilões do espólio de Pessoa. Bastava ir lançando umas achas para a fogueira da discussão estabelecida entre os dois homens para ficar a saber de tudo, entendi. Assim sendo, apenas perguntei quem é que estava a portar-se corretamente para entender o que estava em causa. O primeiro homem alegou que a atitude da família mudara muito nos últimos tempos e o segundo perguntou imediatamente, com um "querias que continuassem a dar a todos os arrivistas a hipótese de lucrar com o que é deles?" Aí, foi a vez de o primeiro voltar a defender o seu ponto de vista: "Vejo que já sabes da carta dos sobrinhos!" Perante o meu olhar de desentendido, ambos explicaram que andava por aí a circular uma carta onde a família se defendia dessas acusações. De um momento para o outro, o segundo retirou do bolso do casaco uma folha com uma fotocópia da tal carta, intitulada "Esclarecimento sobre as calúnias à família Fernando Pessoa", onde se escrevia que havia vários investigadores pessoanos - os tais "arrivistas" - que os acusavam de não ter vendido em finais de 1988 todo o espólio à Câmara e que o contrato fora apenas para, confirmava a família na carta, "dois lotes de livros que o poeta deixara em duas estantes" e que diziam respeito a, leu cuidadosamente, "uma estante com livros encadernados (327) e outra com 777 livros." Ou seja, invocou o primeiro homem lendo a referida carta, a família "vendeu o que foi objeto de um contrato e não tudo o que, na altura, os sobrinhos do poeta pudessem possuir relativo ao tio."

Perante toda esta confusão entre bens e direitos, perante a qual nem os dois especialistas em espólio de Pessoa se conseguiam entender, coloquei a questão de porquê continuar a família a leiloar os bens no país em vez de o fazer no estrangeiro? Se eu soubesse o debate que iria provocar logo em seguida, teria ficado calado! O segundo homem barafustou e disse que os descendentes sempre foram claros nas suas intenções e que poderiam tê-lo feito porque não havia legislação que o impedisse; ao que o primeiro homem lembrou a venda em leilão na Inglaterra das cartas do poeta para a sua amada Ofélia ainda há poucos anos.

Só pensei no que aconteceria se soubessem com quem estavam a falar, o testa de ferro para os planos de Sena no que respeita a duas das peças mais importantes em leilão... Deixei-os a debater a imbricada questão do espólio de Pessoa e voltei ao Observatório Astronómico. Questionei-me sobre se deveria relatar a Sena a polémica entre os dois homens, mas decidi que era melhor ficar calado.

O que se passou na noite do leilão foi uma verdadeira comédia, como se o salão onde ia decorrer o evento se transformasse num palco e os funcionários fossem as personagens de uma peça teatral. Tudo começou minutos antes da hora marcada para o início, quando um representante camarário exibiu a anunciada providência cautelar sobre vinte e cinco do total dos lotes. Em seguida, com o leilão em risco de não se realizar, uma segunda decisão judicial retirou poder à primeira e a sessão começou. Com medo do que poderia acontecer, ninguém licitou a contracapa do livro que a autarquia reclamava como sua, nem contrariaram o representante da Câmara ao exercer o direito de opção sobre o contrato de arrendamento da casa onde o poeta vivera, na Rua Coelho da Rocha. No final, o responsável da empresa fizera um escândalo e acusara o Estado de estar a influenciar o mercado devido à ingerência e de lhe causar prejuízos avultados, bem como aos herdeiros, por provocar receio nos compradores através de notícias publicadas na comunicação social.

A situação era tão complexa que eu fiquei sem saber se iria poder licitar as peças que Sena pretendia? Só após receber uma mensagem telefónica sua é que confirmei que a minha hesitação tinha razão de ser, pois havia uma mudança de planos. Eu já não faria as duas compras, apenas iria participar no leilão que envolvia a arca de Fernando Pessoa, o objeto mais mítico que se encontrava entre todos os que ali estavam. Quanto à segunda licitação, o tal dossier que continha a troca de correspondência entre o poeta e a Besta, Sena disse-me que seria tratado de outra forma - mas não avançou qual.

Quando chegou o momento de ser licitada a arca senti suores frios por todo o corpo porque, para além de ser a minha primeira vez a atuar num leilão, era incapaz de desviar o meu olhar de dezenas de pares de olhos que na fase final observavam a concorrência entre os meus lances e os de outro interessado no móvel. A parada ia subindo entre ambos e os olhares aumentavam de intensidade, até que se focaram todos em mim, o último a rematar com um valor mais alto. Mesmo nervoso, já tinha entendido que o meu adversário estava a fraquejar cada vez que eu adiantava novo valor e, rapidamente, percebi que Sena iria ser o feliz proprietário da arca. O pior foi quando se ouviu a pancada final do martelo do leiloeiro e ele apontou para mim, dizendo: "A arca de Fernando Pessoa vai para aquele senhor", momento em que os jornalistas me rodearam para saber qual era a razão em adquirir o móvel e quem eu era? Não podendo dizer a verdade, inventei uma desculpa e balbuciei que não me queria identificar, apenas revelava que era do Norte e que ia oferecer a peça ao meu pai, que era um grande colecionador de objetos de Pessoa.

Quanto ao dossier, só ao reencontrar-me com Sena é que soube o que acontecera a este bem que ele tanto queria adquirir. Sena fizera os seus lances por telefone mas, a dado momento, fora informado de que a Biblioteca Nacional estava interessado no lote de documentos e que teria prioridade na aquisição.

- Não é um problema, tenho amigos na Biblioteca que em breve me darão cópia de todo o conteúdo!

Sena já estava a dormir quando cheguei e, como não o quis acordar para satisfazer a minha curiosidade, só ao pequeno-almoço é que fiquei a saber o que acontecera com o dossier. Como no leilão se dissera que tinha sido arrematado por telefone, e ido para um comprador que não se queria identificar, achei que teria sido ele.

- A operação correu bem.

Foi assim que fechou a conversa, informando que estava na hora de voltarmos ao Freixo, onde havia muito trabalho para fazer.

- Informe-se sobre se pode levantar a arca ainda esta tarde, porque eu terei mesmo que partir antes do anoitecer e gostava de a levar comigo.

A resposta, no entanto, foi negativa. Só ao fim de uma semana é que a poderia receber, disseram da leiloeira, alertando-me para o facto de poder haver alguma reviravolta nas aquisições porque a Câmara criara uma situação que ainda não estava completamente esclarecida. Ao transmitir a resposta a Sena, vi a sua testa franzir-se como até esse momento nunca observara.

- Bem, esperemos que tudo corra bem. Vai ficar aqui à espera que essas complicações se esclareçam e, logo que saiba o dia e a hora em que pode ir buscar a arca, avise-me.

Avisá-lo era comunicar ao porteiro do Observatório Astronómico, que se encarregaria de me dizer como se efetuaria o regresso ao Freixo. Acenei que sim e despedimo-nos. Sena voltava à terra e eu ao quarto, onde queria sossegar por umas horas e acalmar os nervos que ainda estavam em franja após tanta excitação, a par do medo de não estar à altura da Operação Arca estabelecida pelo meu anfitrião.

O regresso ao Freixo não foi tão simples como eu imaginaria e, tal como no leilão, também aqui me vi envolvido numa espécie de comédia teatral. É que após ler as notícias sobre o leilão, Sena ficara muito receoso sobre se a entrega da arca seria ao comprador ou se esta ainda poderia ser requisitada pelo Estado. Reparava também que o porteiro me observava de soslaio, num olhar continuado e sempre sem deixar de me prestar atenção. Cada passo que dava fora do espaço do quarto era controlado e se queria passear fora do recinto, ele aparecia logo para se informar da razão e do destino da saída. Mas ainda faltava uma semana para levantar o móvel e Sena desobrigara-me de qualquer responsabilidade que não fosse a de recuperar a arca logo que o pudesse fazer. Deixei passar três dias e, a partir daí, insistia diariamente com a leiloeira para saber quando é que poderia ir buscar o móvel que guardara o espólio de Pessoa durante várias décadas.

No entretanto, decidi ir conhecer as marcas de Fernando Pessoa que existiam na cidade onde vivera a maior parte da vida e na qual morrera de cirrose. Tinha comprado um guia que indicava esses lugares na cidade por onde a pessoa do poeta andara. Eram muitos, os suficientes para me ocupar os dias em falta. Comecei pela casa onde nascera, no Largo de S. Carlos, N.º 4, 4.º andar esquerdo. Em seguida, visitei no Chiado a Igreja dos Mártires, onde fora batizado a 21 de Julho de 1888. Fiz uma boa caminhada até à casa para onde a mãe se mudara após a morte do marido, em 1893, na Rua de S. Marçal, N.º 104, 3.º andar. E ao 3.º andar esquerdo da Avenida D. Carlos I, no qual morara algum tempo, entre as estadas na África do Sul e o 2.º andar esquerdo do prédio n.º 98 da Rua de S. Bento, aonde Pessoa ficou a viver com a sua tia em 1905, após regressar de Durban definitivamente. Daqui, subi até à Calçada da Estrela, n.º 100, para ver o primeiro andar onde voltara a reunir-se com a família e o padrasto, em 1906. Logo a seguir, percorri a cidade até a um outro primeiro andar, o do n.º 17 da Rua da Bela Vista à Lapa, para onde fora morar com as tias-avós da mãe, no ano seguinte. O Largo do Carmo, no qual ficava o quarto que alugara no 1.º andar esquerdo do número 18 foi o próximo destino. Ainda tive força para caminhar até à Rua Coelho da Rocha, onde no número 16, ficava o primeiro andar direito que lhe servira de morada nos últimos quinze anos de vida. Quando cheguei ao fim deste roteiro, estava suficientemente cansado para não calcorrear mais a cidade em busca dos lugares relacionados com o poeta nas suas primeiras décadas de vida.

Pensei continuar o passeio no dia seguinte tal era a curiosidade que ainda me dominava, só que desta vez para realizar o percurso das empresas onde trabalhara. Não foi isso que veio a acontecer, pois a curiosidade - de novo ela! - fez-me entrar no prédio da Rua Coelho da Rocha, aonde agora existia a Casa com o nome do poeta. A porta estava aberta e a primeira coisa em que reparei foi a sua carta astrológica pintada no chão da entrada, bem como numa escada em mármore que ligava a uma outra em madeira, que permitia o acesso aos pisos superiores. À esquerda existia um salão que decidi não o visitar de imediato, antes subiria diretamente ao primeiro andar, local onde se encontrava a reprodução do último quarto onde o poeta vivera. Antes de entrar, li algumas informações para os visitantes. Como esta: "A Casa Fernando Pessoa possui um tesouro único no mundo: a biblioteca particular desta figura maior da literatura. É muito raro conseguir-se encontrar a biblioteca inteira de um escritor com a dimensão universal de Pessoa. Os livros tendem a mover-se muito depressa: emprestam-se, perdem-se, vendem-se. Pessoa também vendeu alguns - mas deixou-nos 1142 volumes, de todos os géneros e em vários idiomas, densamente anotados e manuscritos."

Mas o que mais me surpreendeu foi o que estava escrito numa outra informação dada ao visitante sobre o quarto do poeta: "Encontra-se reconstituído tal como era em vida do poeta, com alguns móveis que lhe pertenceram e que o acompanharam ao longo de uma vida de mudanças de habitação - dezasseis no total. Neste quarto encontra-se a cómoda onde Fernando Pessoa terá escrito, na noite de 8 de Março de 1914, três dos seus poemas maiores: O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro; A Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa, e a Ode Triunfal, de Álvaro de Campos. Encontra-se ainda a máquina de escrever que pertenceu a um dos escritórios onde Pessoa trabalhou como tradutor. Foi nela que Fernando Pessoa escreveu grande parte dos poemas do seu heterónimo Álvaro de Campos." Num rápido olhar, procurei entre esses móveis se estava a arca que eu arrematara no leilão!...

Por momentos assustei-me. O que faria ali a arca por que Sena esperava no Freixo e pela qual eu aguardava autorização de levantar na leiloeira? Sem hesitar, desci à recepção e questionei o funcionário sobre o móvel. Se era o verdadeiro? A resposta fez-me parar o suor frio que já cobria todo o meu corpo: era uma réplica. Explicou que não sendo possível adquirir a arca original, a Casa tinha pedido a um marceneiro para fazer uma igual em tudo para poder estar ali exposta. Tentei parecer mais calmo do que deveria estar no momento em que fizera a pergunta e peguei nuns folhetos sobre a instituição para completar o disfarce.

O funcionário ainda me deu outras informações, designadamente sobre a biblioteca que se encontrava no quarto de Pessoa. Como ainda estavam frescas as notícias pela disputa da arca, comentou que se perdera a esperança de ter o móvel original após o último leilão. Explicou que alguém o comprara porque a Casa não tinha orçamento para cobrir o lance e que o Estado fizera orelhas moucas a uma obrigação que lhe era devida. Não dei seguimento à conversa porque não me sentia à-vontade para o fazer, afinal fora eu a protagonizar aquela traição, ao adquirir a pedido de Sena um património que deveria ter vindo para este prédio em vez de estar para lhe ser entregue. Interrompi bruscamente a conversa e voltei a subir as escadas que levavam ao quarto de Pessoa. Designadamente, observei atentamente a arca de todos os ângulos possíveis e imaginei-me a regressar ao Freixo de posse dela. Desejava ardentemente terminar esta missão e aguardar pacificamente pelo fim dos dias que faltavam para terminar o contrato estabelecido com o meu anfitrião.

O quarto era amplo e, para além da biblioteca, continha os móveis referidos no texto que lera há pouco, como era o caso da cómoda onde o poeta escrevera aqueles três magníficos poemas. Olhei para a cama e imaginei como seria interessante deitar-me nela e tentar sentir uma parte dos pensamentos e sensações que o poeta ali tivera e sentira. Estava só naquele piso e não ouvia passos por perto, situação que me levou a pensar fazer essa coisa proibida: deitar-me naquela cama. Inspecionei as divisões próximas e confirmei que continuava sozinho. Regressei ao quarto e iniciei os passos para executar o meu desejo, sem pensar no que me poderia acontecer se fosse apanhado deitado sobre o colchão que acomodara Pessoa.

O colchão não era mole como eu imaginava, talvez porque estivesse demasiado velho e com as molas perras ou as penas gastas. Passada essa primeira impressão, ignorando a situação de perigo em que me pusera, comecei a divagar. Primeiro, recordei um parágrafo de um conto que a Besta escrevera, porque a ação decorria também numa cama. Era assim: "Edgar Rolles sentou-se enrolado à maneira hindu em cima da cama. A lamparina sagrada ainda assobiava. Ida estava deitada ao seu lado, com os braços esticados e dando ao corpo a forma de um crucifixo. Ela mal respirava; não havia qualquer cor no seu rosto. Dir-se-ia o cadáver de uma virgem martirizada. Sobre o corpo branco, a sua própria pureza pairava como um véu." Em seguida, imaginei as vezes em o poeta pensara na sua namorada Ofélia e como teria sido a sensação de estar apaixonado sob aquele teto. Um amor que tinha existido durante dois terços da sua vivência naquele quarto, apesar de ter sido dividido entre um pequeno namoro em 1920 e outro nove anos depois. O que representaria esta mulher para o poeta? Seria um corpo branco como o da Ida que a Besta descrevia no conto e também sem cores no rosto? No conto, seguia-se uma parte em que Rolles delirava. Será que o poeta também delirara por Ofélia, ou só lhe interessara a poesia? O que representara o amor para ele? Parecia-me que Ofélia valia muito menos do que o interesse pelo esoterismo, pelo desígnio nacional do V Império e por uns copos de vinho que emborcava, como mostrava uma fotografia tirada numa tasca fina, que enviara à namorada dizendo que tinha sido apanhado em "flagrante delitro"! O que sentira ela ao ser trocada por um tinto numa fotografia em vez de um momento em que a imagem retratasse os dois num passeio romântico por um jardim? Esse seria, sem dúvida, o presente de que teria gostado e guardado como prova de um amor que o poeta jamais lhe proporcionara.

Estava nestes devaneios quando uma mão me abanou e me sobressaltou. Era a mão de uma criança que passeava pela Casa, adiantado aos seus pais que ainda observavam atentamente a divisão anterior ao quarto do poeta onde eu me encontrava em situação proibida. Quis sorrir-lhe para não a assustar, mas não tive a presença de espírito suficiente para o fazer, levantando-me de um pulo só para não ser apanhado pelos adultos que já ouvia aproximarem-se. Pus o dedo em frente à boca, pedindo à criança segredo sobre o que vira, e disfarcei o melhor que pude a minha presença. Dirigi-me até à biblioteca e fiz que olhava para os livros, ocupando o tempo até que o casal de curiosos se fosse embora. Decerto que a criança iria contar aos pais a situação em que me apanhara, mas isso de pouco me importava agora que estava a pensar um plano mais obscuro e ilegal do que o aquele que empreendera nos últimos minutos. Até que ponto eu conseguiria esconder-me na Casa e passar a noite deitado na cama do poeta?

Se bem o pensara, melhor o executei. Olhei para o relógio e vi que se aproximava a hora do fecho da Casa. Se me escondesse em algum lugar que permitisse passar despercebido, talvez conseguisse realizar o meu projeto. Explorei o espaço mais próximo, pois não queria fazer-me notado se descesse até ao piso da entrada, e descobri uma dependência para arrumos que me poderia servir de esconderijo. Quem é que iria vistoriar aquele espaço? Ninguém, convenci-me a mim próprio, enquanto me esgueirava para o seu interior e fechava a porta. Acalmei o bater do coração sentando-me num banco que ali existia e deixei de ouvir qualquer ruído por parte de quem trabalhava no edifício. Uma hora depois, marcada pelo relógio, achei que já deveria ter passado o tempo suficiente para que todos se tivessem ido embora. A minha única dúvida é se existiria algum funcionário destacado para vigiar a Casa durante a noite? O melhor a fazer seria testar alguma outra presença e, se fosse apanhado, arranjaria uma desculpa que evitasse problemas maiores. Olhei à minha volta e vi que estava sobre uma estante um pesado catálogo. Peguei nele e deixei-o cair ao chão com algum estrondo. Aguardei pelos passos em minha direção mas não ouvi nada. Ou seja, estava mesmo só na Casa do Fernando Pessoa. Voltei ao quarto e reparei que a marca do meu corpo ainda estava bem visível sobre a colcha que cobria a cama. Esta era uma pista que não deveria deixar na manhã seguinte, evitando a todo o custo deixar provas da minha noite passada em casa de outros.

Apesar da escuridão da noite que ia caindo sobre a cidade, conseguia ver de forma clara o interior da Casa. Procurei descobrir de onde vinha essa luz e notei que era através das portadas de uma janela que estavam abertas. Teria de ter cuidado para não ser visto por algum vizinho! Mas, mesmo sendo cedo para me preocupar, o que mais me perturbava era a forma como eu iria sair da Casa na manhã seguinte. Essa era ainda uma estratégia a ponderar e para a qual, decerto, encontraria uma solução. Quanto mais não fosse, abandonaria a Casa ostensivamente e punha-me a correr pela Rua Coelho da Rocha, com a velocidade suficiente para não ser apanhado. Essa seria uma preocupação posterior e agora o que deveria fazer era aproveitar a noite no quarto e na cama do poeta, antes de o cansaço provocado pelo passeio na cidade em busca das suas várias moradas me vergar.

Comecei por analisar os livros existentes na biblioteca particular de Pessoa, tendo acabado por adormecer entretido na consulta de um volume que não tinha sido comprado pelo poeta. Tratava-se de um ensaio de um tal Severino sobre a vida do jovem Pessoa na África do Sul, onde se escreviam coisas inesperadas. Antes de adormecer, pensei na coincidência de o poeta ter vivido quase sempre em primeiros andares e do lado esquerdo... Não foi uma noite que ficasse para a história, tal foi a velocidade a que adormeci e o sono pesado me manteve colado à cama do poeta durante essas horas. A única coisa de que me lembro foi de ter pensado num pequeno trocadilho sobre o seu poema O Guardador de Rebanhos: será que o tinha escrito numa noite em que não conseguia adormecer em vez de ficar a contar carneiros?

A noite passou rápida e de manhã houve que sair em passo rápido. Atravessei-me à frente do primeiro funcionário que chegou à Casa do poeta e fugi em direção às ruas mais esconsas do bairro, perante o seu olhar de pânico. A fuga pela Rua Coelho da Rocha devolveu-me à cidade, mesmo que não soubesse bem em que direção caminhava. Apenas tentava escapar dali o mais depressa possível para evitar ser interrogado pelo funcionário estupefacto, que ainda tentou prender-me pelo braço mas não o conseguiu devido à rapidez com que me esquivei. À minha frente estava um emaranhado de ruas desconhecidas e a única solução foi correr sempre por aquelas que desciam, sabendo que assim iria dar à parte mais antiga da cidade, onde seria mais um entre os turistas que por aí passeavam. Devo ter corrido durante mais de meia hora e andado num passo muito apressado na meia hora seguinte, altura em que achei que teria despistado qualquer um que me perseguisse. Atravessei ainda as ruas próximas sempre em passo acelerado, até que a inclinação da própria rua me fez diminuir a corrida e iniciar aquilo a que poderia chamar de passear. Após mais uma rua que descia, voltei à esquerda e dei comigo em frente à Brasileira, o café onde o poeta se sentou a escrever durante uma época da sua vida. Esta era a velha Brazileira do Chiado e não a outra, a do Rossio, onde também se sentara para escrever, como referira em cartas ao seu amigo poeta Mário de Sá-Carneiro.

Sentei-me um pouco no café, a observar cuidadosamente as pessoas que circulavam, sempre preocupado se o funcionário da Casa seria um deles. Poderia ter-me seguido e estar à espera de um passo em falso para me apanhar! Estive atento por vários minutos até que a sucessão de turistas que se sentavam para tirar fotografias na cadeira que fazia parte da estátua em homenagem ao poeta me distraiu de uma hipotética perseguição. Era curioso observar o corrupio de estrangeiros que faziam questão de levar uma recordação de Pessoa e do velho café que ele frequentara em tempos. Era graças a esta concorrida sessão de fotografias que a estátua se mantinha limpa, como se as roupas de gente vinda de todo o mundo servissem para polir o cobre de que era feito a imagem do poeta. Enquanto pensava nesta particularidade de autoconservação do monumento, pedi uma bica para confirmar se ainda teria o sabor que tornara o estabelecimento famoso no princípio do século XX, e reparei na ementa pousada sobre a mesa. Onde havia uma foto antiga que mostrava a vitrina do estabelecimento e, nela, um cartaz a referir que servia o "genuíno café do Brazil" e também outros produtos tropicais, como a goiabada, a farinha de tapioca e temperos menos conhecidos.

Amanhã: abrir a arca de Fernando Pessoa

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