Como sabia o romancista alemão Thomas Mann (e depois dele, o cineasta Luchino Visconti que adaptou ao cinema o romance Morte em Veneza), nenhuma outra cidade ocidental simboliza tão bem o fascínio humano pela beleza que, em grau superlativo, encadeia e pode revelar-se fatal. Por causa desse poder de sedução, não admira que tantos pintores, de proveniências diversas, tenham revisitado a paisagem desta cidade italiana, num estado que oscila entre o aturdimento e a fascinação. Este é o tema da exposição Veneza em Festa. De Canaletto a Guardi, inaugurada na passada sexta-feira na sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Lá encontramos vários mestres da pintura veneziana do século XVIII, como Canaletto, Francesco Guardi, Bernardo Bellotto e Giambattista Tie- polo, autores de algumas das mais brilhantes composições do seu tempo, mas também artistas não-italianos, como o neerlandês Caspar von Wittel ou o norte-americano John Singer Sargent.Promovida pelo Museu Calouste Gulbenkian, em colaboração com o Museo Thyssen-Bornemisza, de Madrid, esta exposição apresenta mais de meia centena de obras das duas instituições. A Gulbenkian detém hoje a maior coleção de pinturas de Francesco Guardi - 19 obras no total -, enquanto o Museo Thyssen possui um relevante conjunto de trabalhos de artistas venezianos do século XVIII, como Canaletto, Michele Marieschi, Bellotto, Pietro Longhi, Giambattista Piazzetta e Tiepolo. .Celebrações de Veneza.Entre os temas mais representados nestas exposição estão as feste, celebrações realizadas em Veneza, mas também as vedute, vistas panorâmicas de um deter- minado local, e os capricci, nome atribuído pelos historiadores de arte aos desenhos que representavam construções apenas imaginadas pelos artistas, umas vezes como possíveis projetos de arquitetura, outras apenas como fantasias..A complementar as pinturas, esta exposição dá a ver uma seleção de objetos de origem veneziana, como livro e têxteis. Um pequeno conjunto de pinturas do século XIX e do início do século XX retratando a Sereníssima Republica de Veneza, encerra a exposição, invocando o gosto transversal de Calouste Gulbenkian por este género.Como escreve no catálogo António Filipe Pimentel, diretor do Museu, “Veneza - obra-prima da criação humana - fascinou, desde sempre, visitantes e artistas. Disso mesmo é espelho a Coleção Gulbenkian, em que se preservam vistas da cidade realizadas no século XIX, por pintores vários, de Coroa a John Singer Sargent. O auge deste fascínio acontecera, porém, mais de um século antes, no período final da chamada Sereníssima República, porta giratória entre o Oriente e o Ocidente desde a Idade Média: “Veneza converte-se, por esse modo, ela mesma, em obra de arte, foco do trabalho dos artistas que buscariam captar (…) o próprio espírito da urbe.”O que nos é mostrado é, pois, a sumptuosidade da cidade dos Doges, em que o rigor da arquitetura parece pairar, quase etéreo, sobre a improbabilidade da paisagem líquida. Ali estão as sedas luxuosas, as máscaras, a um tempo carnavalescas e perturbadoras, como se a sombra de Casanova, o implacável sedutor, ali pairasse, mas também a graça de cenas domésticas, como As Cócegas, de Pietro Longhi (1702-1785). Proveniente do Museu Thyssen-Bornemisza, esta obra, evidenciando alguma influência das conversation pieces do britânico William Hogarth, constitui, como se pode ler no catálogo, “uma excelente síntese do estilo do pintor (…).”Ao longo desta exposição ficamos ainda a conhecer a pintora veneziana Giulia Lama, não através de obra própria, mas de um retrato pintado por um colega de formação, Giambattista Piazzetta (1682-1754): “Lama terá sido uma das primeiras mulheres a pintar a partir de modelos vivos, nus, facto confirmado pela existência de um número significativo de desenhos anatómicos que realizou de figuras masculinas e femininas.” Como se para ousadia não bastasse, Giulia Lama foi ainda poetisa e muito bem-sucedida na representação pictórica de temas religiosos.Outro ponto de interesse nesta exposição pode ser a maquete de um bucentauro, embarcação cerimonial utilizada pelo Doge, sobretudo nos cortejos na laguna, para receber as embaixadas e as mais altas personalidades da época e usar nas principais festas. O último e, ao que tudo indica, o mais magnífico destes navios terá sido construído em 1729 e tinha um comprimento de 33 metros.Todo ele forrado a folha de ouro, estava construído em dois níveis: a planta inferior estava destinada aos remadores, como numa galé, e a superior, coberta com um grande baldaquino de veludo vermelho, terminava na popa com o trono do Doge. Considerado um símbolo do poder da República de Veneza, em 1796 foi destruído por ordem de Napoleão Bonaparte. .Mediação digital para os visitantes.Esta exposição marca ainda a estreia de um novo recurso de mediação digital - um chatbot (Venez.I.A.) - a que os visitantes poderão aceder através dos seus smartphones, e que responde a perguntas formuladas, via WhatsApp, sobre as obras expostas e o seu contexto artístico e histórico. A programação paralela em torno da exposição (boa parte dela gratuita) inclui concertos de música de câmara, as habituais visitas orientadas e workshops para crianças, famílias e público adulto.O percurso expositivo é complementado por um programa de acessibilidade visual, que contempla várias estações táteis ao longo do espaço da exposição, bem como um percurso de audiodescrição, acessível através de códigos QR.