À procura da herança de Música no Coração
Nem todas as frases de apresentação de um romance conseguem condensar com clareza o seu “conteúdo”, evitando revelações excessivas. No caso de As Cinco Mães de Serafim (ed. Dom Quixote), nono romance de Rodrigo Guedes de Carvalho, faz sentido destacar a singeleza da pergunta que abre o texto da contracapa: “O que é uma família?”
Ficamos a saber que o autor nos propõe um ziguezague temporal de um século (1923-2023) em que permanece um cenário: a Foz do Douro. Figuras nucleares a pontuar esse dispositivo serão Maria Virgínia Landim da Silva, à beira de completar 100 anos, e o seu filho Miguel Serafim.
As datas que balizam o romance conferem-lhe a dimensão de uma memória imensa, individual e coletiva, como uma saga de uma só vez intimista e social. Assim acontece, sem dúvida, mas o tempo narrativo, ou melhor, os tempos narrativos de As Cinco Mães de Serafim vão sendo discretamente pontuados por sinais de uma atualidade que o leitor não poderá deixar de sentir “colada” ao tempo da sua própria leitura.
Exemplo? Já muito perto do final, Miguel Serafim repara que, na televisão, naquelas “notícias menores que rolam abaixo das imagens”, se dá conta da morte do escritor Martin Amis. Ora, a notícia é de 19 de maio de 2023 (convocando também uma memória pessoal, acrescento que, no Festival de Cannes do ano passado, esse foi também o dia de exibição de A Zona de Interesse, o filme de Jonathan Glazer adaptado do romance homónimo de Amis). A “proximidade” da história que nos é contada faz com que não estejamos perante a banal nostalgia de um século - esta é uma aventura pontuada pelas amarguras do nosso presente.
Os fantasmas à espera
Martin Amis, justamente, surge logo no começo através de uma citação do romance Outras Pessoas, dando conta de uma certeza instintiva que vai acompanhar todos os momentos da existência de Miguel Serafim: “Nada mais há do que o passado.”
Aliás, essa é a segunda citação que Rodrigo Guedes de Carvalho escolheu para abrir o seu livro. A primeira, lendária, provém de O Mito de Sísifo, de Albert Camus, e tem qualquer coisa de assombramento humano nascido no caldeirão trágico da Segunda Guerra Mundial (mais exatamente, em 1942): “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.”
Penetramos, assim, nas frondosas peripécias de um romance cujo envolvente fascínio tem tanto de linear como de infinitamente fragmentado - há mesmo uma certa lógica “policial” de exposição de tais peripécias,cujo prazer de descoberta deve ser preservado para o leitor. Trata-se apenas de reconhecer que “Miguel Serafim é o menos suicida de todos os seres.” A afirmação surge logo após as primeiras linhas do romance, linhas que definem um verdadeiro ex-líbris da personagem: “No sonho vê que todos os fantasmas estão perfilados como uma guarda de honra. Eles que esperem.”
Miguel Serafim afadiga-se a prolongar essa espera em que os fantasmas parecem nascer do misto de inocência e perversidade, ou da perversidade gerada pelas mais inusitadas formas de inocência, em que a sua vida, agora à beira dos 60 anos, se desenrolou. Mesmo não esquecendo o pudor que impede de revelar mais do que deve ser revelado, importa referir que ele cresceu num misto de espanto e encantamento em que, com desarmante naturalidade, a mãe e as quatro irmãs formam o quinteto que o título consagra. Mais ainda: a certa altura, os enigmas de tal comunidade (“O que é uma família?”) parecem esclarecer-se num filme visto por um dos dois amigos que acompanham toda a história de Miguel Serafim… Que filme? O leitor lá chegará.
“Saudades da chuva”
Digamos, então, que o cinema perpassa em alguns momentos breves, mas eloquentes, de As Cinco Mães de Serafim como um acontecimento (um fantasma?) capaz de ajudar a clarificar as lógicas internas do próprio espaço familiar.
Lembremos a referência a 1966, quando Miguel Serafim tem apenas 3 anos, todas as irmãs já com mais de 20 anos, e os seus pais assistem a outro filme, Música no Coração, “numa sala de cinema do Porto.” Dir-se-ia que a memória do filme (que Serafim não tem, ou não pode ter da mesma maneira) é uma herança que serve de rastilho emocional para a visão do pai enquanto patriarca daquela comunidade familiar: “Não havia portas fechadas a cadeado, nem grades, nem castigos severos à espreita, mas as meninas foram criadas numa redoma sem conhecerem sequer o conceito de redoma, ou de qualquer outra disfarçada jaula. Para elas era a casa. E em redor da casa, o mundo. O mundo inteiro que cabia no quintal.”
Talvez seja esse o núcleo temático de As Cinco Mães de Serafim. A saber: os labirintos da “propensão muito humana” que consiste em “embelezar o passado e modificá-lo a gosto.” Os amigos, a mãe e as irmãs, o pai, as empregadas, o padre que sabe mais do que aquilo que quer ou pode dizer, as casas para viver a velhice, tudo parece fazer parte de uma partitura musical, cujo autor se ausentou, deixando em aberto o andamento final - enfim, o leitor cedo saberá que, não exatamente por razões simbólicas, Miguel Serafim é um maestro.
Rodrigo Guedes de Carvalho escreve como um compositor que organiza pequenos acontecimentos tecidos de melodias que parecem repetir-se como ecos incestuosos da própria ação. Em boa verdade, nada se repete: vamos pressentindo ligeiras diferenças, factuais ou emocionais, que nos revelam a vulnerabilidade muito humana de quem procura o eco de uma música impossível de refazer na sua pureza original.
Celebremos, por isso, a chuva e a sua paradoxal serenidade: “Tem saudades da chuva, da chuva imensa da infância, as cargas de água que exigiam impermeáveis e galochas, e uma toalha logo à entrada de casa, com que a mãe lhe enxugava a cabeça.”