Júlio Pomar deixou um espólio de milhares 
de poemas. Alguns foram musicados como letras de fados.
Júlio Pomar deixou um espólio de milhares de poemas. Alguns foram musicados como letras de fados.

A "prima contradição" de Júlio Pomar

Um jogo onde referências eruditas se cruzam com a quadra popular. Jogos fonéticos onde o menos importante é a lógica e o absurdo funciona.
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Na multiplicidade de géneros que Júlio Pomar cultivou, seria redutor deixar de lado a quadra popular. Forma do lirismo tradicional, que faz parte da canção desde a Idade Média até ao século XX onde teve em Fernando Pessoa um praticante assíduo, a quadra molda-se perfeitamente à nossa inspiração dita «espontânea». Pomar, no entanto, subverte esse momento em que o menos importante é a lógica, mas sim um absurdo que funciona como colagem, desde a forma – métrica irregular e rima muitas vezes rompendo com as regras habituais. Pelo contrário: o pintor pratica exercícios apanhados de uma inspiração-expiração que obedece às regras de uma musicalidade pouco tonal, embora se adeque perfeitamente a esse género musical, o fado, que ele pratica com um tom surrealista criando efeitos inesperados.

O que me parece interessante é ver como música, imagem e estrutura se organizam numa harmonia dissonante onde os sabores, da cozinha mais económica (que vai dos jaquinzinhos ao bacalhau, das chamuças aos rissóis, do moscatel de Favaios à cerveja) culminando em jogos fonéticos como este:
Cada qual é como é,
Comoção chá e café
Cada qual em sua chávena
E colherzinha à ré
Na regra da arte chávega (p. 211).

São inúmeras estas referências que introduzem dissonâncias de sentido que, obviamente, não são legíveis a não ser por quem tenha uma cultura poética que surge a partir do que se pode chamar uma reunião de amigos que vão de Camões e Sophia, na abertura e no fecho do livro, até poetas que se sentam à mesma mesa (estamos, afinal, numa casa de fados): o O’Neill, o Nobre, o Cesário, e alguns pintores, profissão a tal obriga:
«Horas de ir à Brasileira,Já lá está o mestre Manta (p.211)». Ou:
«Ostinato rigore do mais perverso
O quite às artes dado nas letras
Em versos mastigados recto e verso
Enfados à Picasso etc.» (p. 134)

O que é de notar é o modo como Pomar joga com referências eruditas e com uma língua de tasca, que ele concilia com a arte de quem tem uma pose plena do vocabulário urbano. Há um uso da língua oral que faz apelo à música, o que não quer dizer que seja fácil transformar em fados muitos destes poemas. O que aqui encontramos, na realidade, é uma soma de propostas que nem sempre estão concluídas, ou seja, seria ainda necessário adaptar  alguns poemas ao fado, em trabalho com o cantor (um dos vários e nunca dos menores para quem ele escreveu. E não é de pôr de lado o magnífico prefácio do seu amigo António Lobo Antunes, com uma definição perfeita do que é escrever por parte de uma natural de Requengos:
« - O que está o senhor a fazer?
- Estou escrevendo.
~ Pois, olhar para dentro.
Isto a Margarida, gorda, rugosa. Olhar para dentro, a melhor definição que escutei.» (p. 10).

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