"A música e a arte têm de voltar a levantar bandeiras”
Antes do lançamento do seu disco de estreia, De Sombra a Sombra (2023), Carolina Milhanas já “andava” por aí. Concorreu ao Festival RTP da Canção e foi uma das cantoras que acompanhou Maro no Eurofestival da Canção. Mas, ainda antes disso tudo, em casa, já “bebia” as influências do que ouviu do seu pai, Vítor Milhanas, músico e produtor, que sempre acompanhou outros, como Fausto. As camadas e intensidade do álbum de estreia de Carolina Milhanas aguçaram o apetite para esta conversa. Não se fica indiferente à serenidade e vontade de agitar o mundo - o seu e o dos outros - tudo isto com apenas 22 anos.
Sendo filha de músicos, era inevitável seguir uma vida ligada à música e às artes?
A música sempre esteve presente na minha vida. Associo a música em minha casa a lugares bonitos e, ao mesmo tempo, a lugares mais escuros. O facto do meu pai ser músico e de trabalhar muito à noite e de, a dada altura, deixar de existir na minha vida por causa de uma coisa chamada música, deixava-me triste e, ao mesmo tempo, curiosa. Lembro-me de tentar espreitar o estúdio que tínhamos em casa e às vezes ter medo, porque o meu pai fazia bandas sonoras para peças de teatro e eram coisas muito sombrias. A música só ganhou luz, digamos assim, quando tinha 8, 9 anos e acabou por chegar de forma orgânica, nunca foi imposta. E tive curiosidade desde sempre, quis tocar violino, fui para o coro, toquei trombone, quis experimentar tudo. E tive a sorte de ter uns pais super liberais, que me deram oportunidade de experimentar de tudo um pouco. À medida que o tempo foi passando, fui encurtando as minhas possibilidades e percebi que a voz era o melhor caminho para me exprimir.
E o facto de ter música em casa não criou a reação, sobretudo normal na adolescência, de oposição, de contracultura?
Sempre olhei para o meu pai como um ídolo, foi o meu primeiro ídolo musical. Entendo a pergunta, mas por acaso não aconteceu. A minha mãe sempre cantou, mas é locutora de profissão, e eu também quis fazer locução. Tive sempre muita empatia com a arte e com a música, sempre foi uma extensão de mim. Fiz combos de música jazz e música moderna, pop, etc. Fiz teatro e dança, mas a dada altura percebi que era a voz. Honestamente sabia que era afinada, mas nunca achei que fosse especial ao ponto de poder usar a voz como mote para alguma coisa maior do que a vontade de cantar.
Como foi o percurso até chegar ao primeiro disco?
Deu-se de uma forma muito rápida. Digo sempre que não sou ambiciosa, mas não quero com isto ir para um lugar de ingratidão, sou muito terrena na forma de ver as coisas. E, portanto, quando as coisas acontecem sou constantemente surpreendida e agradecida. Comecei a reunir um grupo de músicos com os quais me identificava - e que ainda hoje me acompanham -, e comecei a escrever canções depois de ter tido um curso de escrita com a Luísa Sobral, que foi muito desafiante e que me ajudou muito. Depois, o fado entrou na minha vida, o que veio dar uma reviravolta na forma de compor e de olhar para as palavras. A dada altura escrevi uma canção, Lamentos, que foi o meu primeiro single. Escrevi e mostrei ao Rodrigo Correia que é o coautor deste primeiro disco. E um dia recebo uma telefonema do Agir para nos encontrarmos e falarmos - o Rodrigo [Correia] tinha-lhe mostrado a canção. Na altura não conhecia o lado versátil do Agir, só o seu lado mais comercial, e percebi que ele é o artista mais versátil que conheci até hoje. E começámos a “namorar” para nos conhecermos melhor e perceber se nos iríamos ligar artisticamente. Começámos a trabalhar e, a dada altura, surgiu o convite para o Festival da Canção, com a música Corpo de Mulher. Foi uma experiência incrível em todos os sentidos porque nunca tinha chegado a tanta gente e percebi que a canção mexeu com as pessoas, foi muito emocionante para mim. E depois sim, fui à Eurovisão com a Maro, foi uma viagem de seis amigas a Turim.
E qual foi o momento, se calhar em conjunto com o Agir, em que houve a decisão para avançar para o álbum?
Este disco não foi pensado para ser um disco. As canções fizeram parte desse tal namoro metafórico. Ia tendo coisas para dizer, coisas escritas em vários momentos. Não estava a escrever canções para um disco, estava a fazê-lo de forma descomprometida. E quando percebemos que existiam dez, 11 canções que, de uma forma inconsciente, relataram a minha vida até aquele momento, foi fácil a concretização do disco.
Essa forma de criar canções avulsas é fruto de uma nova maneira de construir os discos, nesta época das plataformas de streaming?
Gosto de acreditar que todos os discos têm um motivo maior e não só uma junção aleatória de canções que podem resultar à posteriori. Tenho essa esperança, mas não sei se é real ou não. Para este disco dei-me ao luxo de o fazer de forma descomprometida e não estava a pensar se ia dar certo ou não. Sou nova e sei que tenho tempo e que se o disco não desse certo iria ter mais oportunidades. Mas quis ser fiel ao que gosto e não alterei as canções para resultarem mais na rádio X ou Y e para ser mais fácil as pessoas gostarem. E, por isso, dei-me ao luxo de ter feito um trabalho descomprometido e completamente honesto. Respondendo à sua questão, escrevi aquelas canções para exorcizar um certo período que vivi.
E que momento foi esse?
Já não estou naquele lugar, mas às vezes é penoso pensar que estive lá. É um disco que fala sobre uma miúda que foi perdendo a esperança no mundo, por variadíssimas razões. Se calhar por ser atenta ao que se passa e por desejar que o mundo fosse de uma forma que não é. E isso foi crescendo em mim. Em vez de me levar para um lugar de reação. Entrei num loop em que sentia que não era justo ser feliz num mundo como este. Agora estou a caminhar no sentido oposto.
Quem é a Milhanas artista?
É uma pergunta difícil. Primeiro dizer que esta resposta pode não ser transversal daqui para a frente, porque a artista que sou hoje posso não ser amanhã. Assumi este disco como um disco triste. É um disco egocêntrico, que fala sobre um período da minha vida. Mas isso não quer dizer que amanhã não faça algo sobre a situação que o mundo vive, por exemplo. Serei sim, sempre verdadeira com os momentos que estarei a viver.
Como é que se explica a sonoridade do disco. É fado, é pop, o que é?
Sou contra a categorização da arte, acho que é muito perigoso. Apesar de acontecer cada vez mais. Falo por exemplo da associação inevitável do meu disco ao fado, que é perigosa. Eu não sou fadista, nem nunca me vão ouvir dizer que o sou. O fado tem uma estrutura específica e eu não a sigo, não há um único fado neste disco, há sim muita influência. Essa categorização é perigosa porque se alguém ouvir o meu disco e disser “é a mistura de fado com alguma coisa”, vai fazer com que alguém que não saiba o que é fado possa achar fado é isto. O que não é verdade. O fado é um mundo muito mais especial e diferente. O meu disco não nega o meu amor pela cultura portuguesa mas também não nega nenhuma influência estrangeira. Não quero viver agarrada ao amor pela nossa cultura, tenho muito tempo para explorar milhões de sonoridades. Os meus próximos discos poderão soar menos a Portugal. Serão sempre uma esponja do que estiver a viver.
Nessa “vida”, como são escritas as canções?
A Luísa Sobral disse-me: a inspiração constrói-se e trabalha-se. Ou seja, não posso esperar por “aquele” momento onde surge uma ideia genial. Se me sentar todos os dias com a guitarra e com um caderno e escrever alguma coisa, a inspiração vai aparecer de uma forma mais regular. Antes compunha a parte melódica e harmónica e a parte lírica ao mesmo tempo, não as conseguia separar. Hoje é o contrário. Às vezes vou ouvir fados e quando chego a casa escrevo um poema, ou lembro-me de alguma coisa e escrevo, e depois sim vou para a melodia. Sinto que hoje sou menos perfeccionista na parte musical, mas sou muito na parte lírica porque tenho muito amor pela literatura e acho que nunca vou escrever nada de especial. Fico sempre com síndrome de impostor a achar que não vou conseguir fazer nada de jeito.
Cantar em português foi sempre o propósito?
Sim. Mas não sei como será o próximo disco…até pode ser em espanhol. A Luísa Sobral, regresso a ela (risos), ensinou-me que as canções falam a sua própria língua. Na altura não consegui perceber o sentido do que me disse, mas agora sim. Ainda há pouco tempo escrevi uma canção em espanhol, saiu. Aquela canção tinha de ser assim, e eu nem sequer sou fluente em espanhol.
Se uma música sair em inglês…
Como é que alguém de 22 anos olha para o momento pelo qual a música está a passar em Portugal?
Vive-se um tempo de artistas muito bons, com profundidade. A minha geração apareceu em força com projetos diferentes e corajosos. Honestamente, levanto-me por todos os artistas que têm coragem de levar o seu projeto em frente, num país que pouco é para os portugueses e muito menos para os artistas. Merecem uma ovação de pé por isso. Mas, ao mesmo tempo, falta alguma coragem, e contra mim falo, porque vivemos num tempo em que já não há mais tempo. E a música e a arte tem de voltar a levantar bandeiras. Embora seja absolutamente necessário canções leves e alegres. E mesmo achando que essas coisas devem ser orgânicas e não forçadas, não há mais tempo. Temos de falar sobre as coisas, A Garota Não é um bom exemplo disso, embora ela se assuma quase como uma cantora de intervenção com mensagens políticas. Não digo que tenhamos de ir tão por aí, mas não há mais tempo.
Os artistas e os poetas devem vir para a rua?
Acho que sim, se calhar estou enganada, mas gostava que assim fosse. E não temos de ir todos, quem não quiser não o faça.
Como é que a sua geração vê o mundo?
Falando por mim, e não querendo ser generalista, aquilo que observo é que nos dividimos em vários grupos. Entre eles um grupo com muita coisa para batalhar: porque não consegue pagar a faculdade, não consegue sair de casa dos pais, quer ter filhos e casar e não consegue. Esse grupo não tem tempo para estar atento às notícias de por isso baixa os braços, perde a esperança, como se o destino já estivesse escrito. E como a minha geração não viveu um 25 de Abril, nunca viveu um momento em que o povo conseguisse mudar alguma coisa, não há essa ideia de que juntos conseguimos. Mas também há um grupo que pensa que já não há tempo e têm de ser feito algo, só que ainda não sabemos como. Porque sentimo-nos enganados. Esse grupo vira-se para todos os lados e não sabe como fazer.
Voltando ao disco, esse momento negro que já passou está a ser substituido por uma esperança de mudar o mundo?
Acho que não. Não quero ser derrotista, porque vivemos em ciclos, mas acho que este momento que vivemos vai prolongar-se e ainda vai piorar. E quem sou eu para dizer isto, mas tenho a sensação que estamos a viver apenas o início do icebergue, em todos os sentidos. A espécie humana é assim, e não consigo perceber porquê, mas parece que precisamos que esteja tudo escarrapachado na nossa cara para agir. A esperança que referi é a um nível mais pessoal. Vou referir o filme Dias Perfeitos (de 2023, realizado por Wim Wenders) que é inacreditável, e estou mais nesse lugar. Pode tudo estar caótico, mas há coisas bonitas se nos virarmos para a arte e para a natureza, para as coisas mais simples.É a isso que temos de nos agarrar e tentar usá-las a nosso favor e a favor dos outros. Se tenho esperança no mundo? A esperança é a última a morrer.
Já há ideias para o próximo disco?
Ainda não tenho nada para dizer. Claro que penso num próximo disco, nem que seja porque estou sempre a fazer coisas, mas neste momento estou a escrever para outras pessoas.
Em maio acontece o primeiro concerto em nome próprio, no Maria Matos, em Lisboa...
Quero criar um momento muito intimista. Quero que as pessoas se envolvam mesmo com o disco e que, na sala, seja transversal a todos. E quero mesmo incluir as pessoas no concerto, não vai ser um momento sobre mim e sobre a minha história, mas sim sobre a história das pessoas que lá estão. E vou arranjar umas formas engraçadas de o fazer. Estou muito ansiosa, estou à espera deste momento há algum tempo.