Gaspard Ulliel e Vicky Krieps: fantasmas da melancolia sensual.
Gaspard Ulliel e Vicky Krieps: fantasmas da melancolia sensual.D.R.

A morte anunciada e como a viver

Último filme com o falecido ator Gaspard Ulliel, 'Mais Que Nunca' é sobretudo um palco para a naturalidade performativa de Vicky Krieps. História assombrada por uma doença terminal, na lente de Emily Atef.
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Aos poucos, num curto espaço de tempo, Vicky Krieps tornou-se um caso sério de “corpo de cinema.” Descoberta por Paul Thomas Anderson, no sentido da verdadeira revelação, vimo-la fazer em Linha Fantasma (2017) uma dupla memorável, nocivamente romântica, com Daniel Day-Lewis. Seguiu-se, mais coisa menos coisa, A Ilha de Bergman, de Mia Hansen-Løve, onde partilhou com Tim Roth a experiência psicologicamente exigente de um retiro de trabalho na casa do cineasta sueco do título, e pouco depois, sob a direção de Mathieu Amalric, deu vertigem emocional a uma mulher devastada por uma tragédia familiar, em Abraça-me Com Força, fechando-se este ciclo de brilharetes com Corsage - Espírito Inquieto, um filme de Marie Kreutzer que não está bem ao nível da sua força performativa, mas no qual revestiu Sissi, Imperatriz da Áustria, de uma perturbante nota de desassossego feminino.

Perante estes exemplos, é fácil perceber o que é que a realizadora Emily Atef viu na atriz luxemburguesa ao escolhê-la para o papel de uma mulher com uma doença pulmonar terminal, que se recusa a ser alvo de um teatro de olhares de comiseração. Em Mais Que Nunca, Krieps surge então como essa figura visivelmente conotada com a saúde frágil, mas nunca permitindo que a postura da sua personagem, Hélène, se deixe dominar pelo sentimentalismo dolorido da situação: na companhia dos amigos, ela irrita-se com a dissimulada gestão das conversas e, nas longas tardes sozinha em casa, pesquisa na internet abordagens de fim de vida que não remetam para os clichés depressivos da pessoa doente. E encontra...

Terapia escandinava

O filme terá, assim, uma espécie de segunda vida quando Hélène decide fazer uma viagem à Noruega, pedindo ao namorado (o saudoso Gaspard Ulliel) que não a acompanhe nesse lugar remoto, pois precisa de se encontrar consigo própria. Ou seja, na verdade, ela não está sozinha à chegada: durante as suas tardes caseiras, conectou-se com um internauta norueguês - alguém numa condição semelhante -, sentindo-se revitalizada pelo humor negro do blogue dele, e vendo na paisagem de um fiorde a possibilidade de explorar a finitude do seu corpo.

Dito desta maneira, pode parecer que Plus Que Jamais resvala para a simples meditação espiritual, com propósito inspirador. No entanto, o que Emily Atef procura tem menos que ver com o espírito do que com uma concentração de energia física e mental na aceitação da morte. E aí, Krieps não dá um único passo em falso, garantindo que o filme escapa às armadilhas do drama chorão - assim como Marie Bäumer, que interpretou Romy Schneider na anterior longa-metragem de Atef, 3 Days in Quiberon, alcançou uma expressão adequadíssima à memória de uma mulher-mito a confessar-se na sua última entrevista (por sinal, Schneider que tentou sempre libertar-se da associação à personagem da referida Sissi.

Confirma-se então a sensibilidade de Atef para o mundo feminino que se aproxima emocionalmente da ideia da morte, neste caso, enquanto forma de poder sobre o próprio destino. Uma equação que também respeita a textura da dor do outro lado - isto é, do marido da protagonista -, deixando-nos com a derradeira imagem de Gaspard Ulliel no grande ecrã, o ator francês que morreu na sequência de um acidente de esqui em 2022, tinha 37 anos... A morte paira, portanto, sobre Mais Que Nunca, e a melancolia do seu fantasma é mantida habilmente sob controlo. Até porque quem tem intérpretes de excelência tem (quase) tudo.

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