A menina-cinema
Charlotte Wells filma uma menina a ver o mundo, a descobrir o pai. É um gesto biográfico. O filme chama-se Aftersun e arrisca-se a entrar na lista dos melhores de 2023. Está nomeado para Melhor Ator - Paul Mescal - nos Óscares.
Caiu de surpresa no último Festival de Cannes. O "tal" filme escocês escondido na Semana da Crítica (como é possível ter passado ao lado da competição oficial!?) que cedo se tornou na obra de que todos falavam. O segredo desta estreia de Charlotte Wells é assumir um naturalismo com o decoro sofisticado - a saber: uma autenticidade à flor da pele na exploração de uma relação entre um jovem pai e a sua filha a entrar na adolescência. As nossas memórias como epifanias de um estado de alma e os laços que nos ligam. Não é fácil conseguir isso, em especial se for com essa doce e turbulenta verdade, própria de umas férias que nos ligam.
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Sophie, a menina de 11 anos, pode ser uma sombra de autobiografia da realizadora, mas é sobretudo um farol da infância de cada um de nós. Aquela nossa versão de uma idade que está naquela orla da mudança na qual, num estalar de dedos, o mundo ou a visão dele pode ser uma outra coisa. Depois, a figura do pai num contexto de férias a dois. Entre mergulhos na piscina e idas ao bar de um hotel turco nos Anos 1990 quando a canção Macarena atormentava quem pensava que tinha bom gosto. São aqueles "momentos de definição" que passam por primeiros beijos e pelas primeiras fugas à noite. A recordação de noites quentes, das desilusões e dos sonhos que não se cumpriram. Mas nesta relação pai-filha sobra sempre o mais importante: uma cumplicidade dos afetos, mesmo que a dor de uma separação esteja sempre ali mesmo ao lado.
Depois, pelo meio, chegamos em flashforward ao presente: a menina já é adulta e está num clube noturno em comunhão com música de dança e luzes strobe. Não importa o que ficou escondido daqueles dias de sol na Turquia. Foi talvez um chamado "tempo de qualidade" que marcou uma vida. Ou quando nessa ideia de vida estavam planeados sorrisos e gestos de amor.
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Crónica comovente, comoventíssima, sobre as imagens e o seu poder, Aftersun marca uma interrogação acerca das possibilidades do próprio cinema. Charlotte Wells, nomeada aos BAFTA, não apresenta garantias existenciais, mas aposta tudo numa crença sensorial. Este é um filme para ir direto ao coração e aos neurónios.
Ficamos no final muito anestesiados pela sua beleza íntima, mas também pela carga exterior. Se Sophie é uma caça-imagens, no seu interior, Aftersun é um testemunho sobre um processo de alguém a fundir-se com a função de captar cinema. A menina-cinema não faz autoterapia familiar, mas este é o mais belo dos filmes de "álbum de família". De alguma maneira, é Os Fabelmans no divã. E é também um ensaio sobre um milagre chamado paternidade. O lugar do pai, o lugar da filha. Coisas que não se explicam, apenas se sentem, sobretudo ao entardecer após tranquilos banhos de sol.
E nessa poesia epistemológica da adolescência e dos seus mistérios não surge nenhuma teoria, Wells prefere antes uma sensação atmosférica. Sensação essa que deixa qualquer um com pele de galinha, sobretudo por esta câmara saber olhar para o mundo, para a vida...
Uma câmara comandada por dois atores que representam em par, a menina Frankie Curio e Paul Mescal, a nova coqueluche do cinema britânico.

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