Os seus dois anteriores romances históricos têm a Ásia e o século XVI como ponto de partida. Agora é África e a passagem do século XIX para o XX. Foi um desafio para si? Cada livro é sempre um desafio, mas a mudança de geografia foi mais uma consequência do que propriamente um desafio. Vivi na África do Sul durante sete anos, tive a felicidade de visitar Moçambique muitas vezes e de conhecer vários outros países africanos, alguns deles fora do circuito turístico habitual. O livro centra-se em Moçambique e na África do Sul, mas tem passagens na Tanzânia e no Ruanda, entre outros. O mais desafiante foi realmente a mudança temporal para o final do século XIX / início do século XX: tive de fazer muita pesquisa sobre o que se passou naquela época no Sul de África, mas felizmente é um período bem documentado. A Sociedade de Geografia de Lisboa, o Arquivo Histórico Ultramarino e a Torre de Tombo têm bastante informação, inclusive sobre a construção da linha férrea entre Lourenço Marques e Pretória e o impacto da Guerra dos Bóeres em Moçambique; as fontes em inglês e afrikaans sobre esse período são também variadíssimas. .Como se interessou pelo caso do Angoche? Desde o primeiro momento em que li sobre este caso, na revista de bordo da LAM, num voo entre Maputo e Pemba, em 2008. Fiquei boquiaberto: um cargueiro da marinha mercante encontrado a arder em alto-mar, à deriva, fora de rota e sem ninguém a bordo. Percebi logo que poderia ser um tema excelente para um romance, até porque tenho um grande fascínio pelos enigmas da História de Portugal aquém e além-mar. Passei dias na Torre do Tombo a investigar os processos da PIDE-DGS, tentando descortinar o que poderia ter acontecido. No entanto, o meu interesse pelo caso acabou por esmorecer, pois eu, na altura, encontrava-me mais focado na presença portuguesa na Ásia e não me sentia verdadeiramente motivado para escrever um romance sobre a Guerra do Ultramar..Temos também a Guerra dos Bóeres como parte importante do livro. Tem que ver com a sua experiência de vida na África do Sul? Sem dúvida. Eu já tinha uma ideia do que tinha sido a Guerra dos Bóeres, mas aprendi muito sobre a África do Sul e a sua História durante a minha estadia em Cape Town. As marcas da guerra e de como essa época moldou o país ainda hoje são visíveis e palpáveis. Os monumentos desse período permanecem quase todos intactos e com grande visibilidade. O meu interesse foi aumentando à medida que fui percebendo o impacto que a guerra teve em Moçambique e o papel que Lourenço Marques desempenhou nesse conflito. A figura do Governador-Geral de Moçambique Joaquim José Machado é incontornável, pois foi ele o “arquiteto” do traçado urbanístico de Lourenço Marques e da linha ferra para Pretória - essa duas obras foram, na altura, revolucionárias..O Segredo de Lourenço MarquesEduardo Pires Coelho Oficina do Livro 376 páginas17,90 euros.Explique um pouco a figura de Filipe, que vai passando de um romance para outro? No meu primeiro livro, Filipe é alguém que herda uma investigação muito importante do pai, nascido em Moçambique, que fora um grande historiador sobre a presença portuguesa no mundo. Neste meu novo livro, achei interessante voltar a dar protagonismo a Filipe, pois ele tem raízes moçambicanas, alcançou uma grande fama internacional com o caso Flor do Mar, e poderia acrescentar muito para a trama. A minha ideia inicial do personagem nasceu como alguém vindo de fora do mundo da arqueologia e da investigação histórica (da área das finanças), que, de repente, é confrontado com a missão da sua vida. Neste caso, Filipe também é surpreendido com a natureza da missão de que é incumbido, mas acaba por aceitá-la, pois está ligada a Moçambique..O tema da campanha contra Gungunhana ou a própria Guerra do Ultramar poderia dar livros por si só? Claro que sim, são temas complexos e por si só fascinantes. Gungunhana é uma figura controversa mesmo em Moçambique. Foi interessante ver a placa em sua memória no Monte Brasil, em Angra do Heroísmo, para onde ele foi desterrado, e não deixei de equiparar o seu destino ao de Napoleão: afinal, também ele viveu aprisionado os últimos anos de vida numa ilha no meio do Oceano Atlântico. Por outro lado, a Guerra do Ultramar/Independência durou dez anos em Moçambique (13 em Angola) e tem milhares de pequenas histórias intrigantes. Contudo, confesso que tive um especial cuidado para não focar demasiado o enredo nas Grandes Campanhas ou na Guerra do Ultramar - ambos os temas estão presentes, embora o ponto principal do livro seja outro..Agora África e antes Ásia, mas mesmo neste seu livro há pistas de como o império português se intercruzava, com o papel dos goeses e outros indianos na colonização de Moçambique. Isso não o surpreendeu? Quem conhece Moçambique não fica surpreendido com isso. As marcas indianas em Moçambique têm mais de três séculos e continuam bem presentes, desde os baneanes de Diu, às “Donas da Zambézia”, à arquitetura das casas na Ilha de Moçambique e aos primórdios da Rua da Gávea em Lourenço Marques, passando, claro, pela gastronomia. Mas essa política de cruzamento no Oriente já vinha muito de trás, desde o tempo de D. Afonso de Albuquerque, que estabeleceu os alicerces do Estado da Índia: esse é um dos temas do meu primeiro romance, centrado em Malaca, um dos maiores entrepostos portugueses no Oriente..É interessante o apoio português aos Bóeres. Foi sobretudo por causa do Ultimato Inglês de 1890? Sem dúvida; o sentimento antibritânico nessa altura era generalizado em todas as classes, incluindo os militares, e a revolta republicana de 1891, no Porto, foi um forte abalo no regime. A monarquia ainda iria durar mais alguns anos, e a lealdade institucional com Londres manteve-se mais ou menos intacta. Por isso, o apoio às repúblicas bóeres foi sempre dissimulado, com as autoridades de Lourenço Marques a tentarem contornar as diretrizes vindas de Lisboa, embora evitando uma situação de conflito aberto com os interesses britânicos na região. Julgo que a maioria da população de Lourenço Marques era a favor dos bóeres e até defensora dos ideais republicanos, e por isso, tudo fez para ajudar os refugiados bóeres que chegavam à cidade, a fugir da guerra..Uma das personagens principais é o português Ferreira, que combate ao lado dos bóeres. Mas curiosamente Ferreira até pode ser um nome bóer (ou africânder). Escolhi esse apelido propositadamente para, de alguma forma, evidenciar isso mesmo. Conta-se que o primeiro Ferreira na atual África do Sul foi o Inácio Ferreira, um naufrago português do século XVIII, e o apelido continua a ser relativamente comum no país. Posso adiantar três exemplos interessantes: 1) Joanesburgo foi fundada como cidade mineira no final do século XIX e o primeiro acampamento chamou-se Ferreiras Kamp. Ainda hoje esse nome se mantém no centro da cidade; 2) um dos jogadores da atual seleção sul-africana de cricket é o Donovan Ferreira; 3) um dos autores sul-africanos que li para a elaboração deste romance foi o Ockert Ferreira, que escreveu um livro muito especial sobre a presença dos refugiados bóeres nas Caldas da Rainha entre 1901 e 1902. .O que levou alguém vindo do mundo da finança a escrever romances históricos? Sou um apaixonado pela História desde criança e li centenas de livros sobre os vários períodos que me fascinam, sobretudo do século XV em diante. A paixão pela escrita também é anterior à minha entrada no mundo financeiro e foi algo que nunca abandonei, apesar do frenesim constante dos mercados bolsistas. O meu primeiro romance, O Segredo da Flor do Mar, foi quase todo escrito em aeroportos e hotéis durante os meus períplos a visitar investidores internacionais, como uma forma de escape ao dia-a-dia. Essas mesmas viagens serviriam, mais tarde, como fonte de inspiração para continuar a escrever outras histórias, até porque eu não gosto de escrever sobre locais que não conheço..Já tem ponto de partida para novo romance? Sim, já até tenho muitas ideias para os próximos romances. A História de Portugal é sempre o meu ponto de partida e uma fonte de inspiração permanente, principalmente a nossa presença global de outrora, que tantas marcas deixou em países tão díspares como a Indonésia, o Quénia ou o Uruguai. Em muitos desses locais, continuam a existir mistérios e dúvidas sobre vários acontecimentos (tais como a Flor do Mar ou o Angoche) e são esses mesmos eventos que eu procuro ficcionar. Material não falta….O segredo de Lourenço Marques foi apresentado a 28 de junho em Lisboa, no Museu do Oriente, por Margarida Lobo Antunes e Paula Lobo Antunes, duas trinetas de Joaquim Machado, governador de Moçambique na época em que se passa a ação do romance. Na foto, também a editora Maria do Rosário Pedreira e Eduardo Pires Coelho.