A literatura também se vê
É uma iniciativa conjunta entre a plataforma Filmin e o grupo editorial Leya. Durante os dias da Feira do Livro de Lisboa (que arrancou esta quarta-feira e termina a 16 de junho), a compra de um livro nas bancas da Leya dá direito a um código promocional, que equivale a um mês grátis de subscrição Filmin. Isto ao mesmo tempo que se celebram os rostos da literatura nesse catálogo do streaming. Temos então, de um lado, os livros, e do outro, o universo dos escritores e as suas histórias biográficas, arrumados numa estante virtual chamada “Filmin Books” - aí encontram-se cinco documentários que permitem conhecer melhor o segredo por trás do sucesso de Stephen King, a polémica publicação do romance Psicopata Americano, no início dos anos 1990, a mulher escondida nos versos de Baudelaire, a zanga de Sartre e Camus, ou a magia dos livros segundo Umberto Eco.
Em terras americanas
Começando por Stephen King: Um Mal Necessário (2020), documentário de Julien Dupuy, estamos perante uma janela dinâmica com vista para o fenómeno popular de um dos maiores ícones da literatura de terror. Reunindo diversas entrevistas de King ao longo dos anos, mas também palestras e excertos de adaptações cinematográficas dos seus livros (afinal, é o mais adaptado dos escritores), este surge como um olhar panorâmico que apanha toda a dimensão do sucesso, e o que está por trás disso, desde a reflexão sobre o medo e a violência na cultura americana aos temas específicos da sua literatura. Espreita-se aqui o famoso caso de The Shining (1980), essa celebérrima adaptação de Stanley Kubrick que Stephen King não apreciou, no espírito da sua letra, mas igualmente o modo como o romance A Zona Morta adivinhou Trump... Pouco mais de 50 minutos bem passados com as ideias do autor de It, que é um feroz defensor dos hábitos de leitura.
Já American Psycho: Bret Easton Ellis (2021), de Jean-Christophe Klotz, como o título indica, concentra-se no muito controverso romance de Bret Easton Ellis, hoje uma obra de culto, que aquando da sua publicação pôs os media americanos e franceses a debater sobre a violência descrita no livro. Três décadas depois do lançamento, o escritor da Geração X senta-se para conversar, discorrendo sobre o que esteve na origem da criação da personagem do serial killer Patrick Bateman (interpretado no cinema, com furor, por Christian Bale), e tenta observar à distância toda a repulsa gerada nesses Anos 90. Um choque e reação massiva aqui dissecados com a ajuda de editores, especialistas e autores amigos de Ellis.
Com efeito, a crítica e os leitores da época parecem não ter ido além do verniz estilístico da dita violência, porventura ignorando as questões de fundo sobre a representação da alta finança, a cena de Wall Street nos Anos 80 e todo o simbolismo de uma sociedade doente, explorados em Psicopata Americano com um humor, pelos vistos, inadmissível. O documentário vem fazer um pouco de luz sobre as razões erradas que o tornaram um clássico da literatura, e usa motivos visuais explícitos - machados e salpicos de sangue -para brincar com a memória.
A intelectualidade francesa
Sendo quase todas produções televisivas francesas, os documentários centrados em figuras do específico contexto literário francês apresentam-se, mais do que os outros, como objetos de uma certa tradição cultural de TV, em que impera a narração voz off. Caso de Jeanne e Baudelaire (2022), de Régine Abadia, a versar sobre a história de amor entre o poeta e uma mulher negra, na Paris do século XIX. Uma pesquisa em torno da “mulher sem nome” que é Jeanne Duval, e cuja presença ocultada numa pintura de Gustave Courbet desencadeia uma narrativa sobre o modo como se tentou apagar o seu rasto da vida de Charles Baudelaire (por óbvias motivações racistas), apesar de a sua influência persistir nos poemas do livro As Flores do Mal, com descrições inequívocas.
Por sua vez, Sartre e Camus: O Fim de Uma Amizade (2014), de Joël Calmettes, percorre a cronologia da proximidade entre os dois escritores politicamente ativos, até ao ponto em que as suas posturas intelectuais entraram em rota de colisão. Trata-se de perceber as diferenças entre o homem de origens humildes, Albert Camus, e a personalidade cultural Jean-Paul Sartre, nascido em berço burguês, olhando as fases desta amizade instigada, antes de mais, pela leitura dos livros um do outro, que no plano pessoal se foi degradando publicamente à medida que as nuances políticas (apesar de serem ambos de esquerda) se intrometeram na relação humana. Uma radiografia dos autores de O Estrangeiro e A Náusea, respetivamente, complementada com arquivos e gravações inéditas de ambos.
Elogio da biblioteca
Finalmente, Umberto Eco - A Biblioteca do Mundo (2022), documentário de Davide Ferrario que passou pelas salas no último ano, aparece neste pacote de novidades Filmin como a faceta que faltava: o amor aos livros, na imagem daquele que o cultivou incessantemente. É uma verdadeira viagem lúdica pelas estantes, ideias-chave e bibliofilia do autor de O Nome da Rosa... que não gostava de ser lembrado apenas por este romance. Alicerçado no sentido de aventura literária de Eco - e na sua biblioteca com mais de 30 mil livros, entre os quais 1200 obras raras e antiquíssimas - Ferrario cria uma experiência de comunhão com a memória analógica, através de excertos de entrevistas e conferências do estudioso italiano, mas também interlúdios performativos que dão vida às suas palavras.
Um olhar de puro fascínio pelo objeto livro, que remata lindamente o ciclo de uma mão-cheia de documentários prontos a satisfazer diversas curiosidades literárias. Dir-se-ia que são perfeitos suplementos de leitura.