A história que deu origem ao filme 'Ainda Estou Aqui'
“Dirijo-me especialmente aos trabalhadores, estudantes e povo de São Paulo, infelicitado por este governo fascista e golpista que neste momento vem traindo o seu mandato e se pondo ao lado das forças da reação”, discursou o deputado Rubens Paiva, na Rádio Nacional, do Brasil, horas depois do golpe de Estado que instalou uma ditadura militar no país no dia 1 de abril de 1964. Na sequência, a 10 de abril, o mandato de Paiva, cuja prisão, sequestro e execução são o fio condutor do filme brasileiro Ainda Estou Aqui, candidato a Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro na edição deste domingo dos Óscares, foi suspenso.
Rubens Beyrodt Paiva, papel do ator Selton Mello, foi um dos dois filhos de Araci Beyrodt e Jaime de Almeida Paiva, latifundiário da região de Eldorado, a mesma cidade onde, por coincidência, o ex-presidente Jair Bolsonaro cresceu. Advogado, o “doutor Paiva” ou “coronel Paiva”, como era chamado, entraria mais tarde para a política. Rubens também foi seduzido pela política mas, ao contrário do pai, logo na juventude, envolvendo-se na campanha “o petróleo é nosso”, que resultaria na fundação da Petrobrás, a petrolífera estatal brasileira, enquanto se licenciava em engenharia civil na Universidade Mackenzie, em São Paulo.
Em 1952, com 23 anos, o jovem engenheiro casou-se com Eunice Facciolla, interpretada por Fernanda Torres, nomeada pela Academia para Melhor Atriz, e por Fernanda Montenegro, numa cena. Com ela, formada em letras na mesma universidade, teve quatro filhas e um filho, Marcelo Rubens Paiva, o autor do livro que deu origem ao filme homónimo.
Rubens Paiva elegeu-se, em 1962, deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o mesmo de João Goulart, o presidente que acabaria por ser vítima do golpe de estado de dois anos depois. “Julgamos indispensável que todo o povo se mobilize tranquila e ordeiramente em defesa da legalidade prestigiando a ação reformista do presidente João Goulart que neste momento está com o seu governo empenhado em atender todas as legítimas reivindicações de nosso povo”, disse ainda o deputado naquele discurso que o colocou na mira dos militares.
Depois de um breve período exilado, Rubens trocou São Paulo pelo Rio de Janeiro, onde retomou o trabalho como engenheiro, o período retratado no filme. Nessa altura manteve contato com pessoas perseguidas pelo regime, ajudou membros da resistência armada a partirem para o exílio e, a 20 de janeiro de 1971, após a instalação do Ato Institucional número cinco, que instituiu a tortura e o assassinato como instrumentos da ação do Estado, foi levado de sua casa para a prisão por seis homens armados.
Começou por ser interrogado no quartel do comando da Terceira Zona Aérea pelo general João Paulo Burnier, definido pelo brigadeiro Eduardo Gomes como “um insano mental inspirado por instintos perversos e sanguinários”. Depois de Rubens, também Eunice e Eliana, filha de 15 anos do casal, foram detidas naquele dia. Eunice ficou incomunicável por 12 dias.
A polícia política, o Destacamento de Operações Institucionais, Centro de Operações de Defesa Interna, conhecida pela sigla DOI-CODI, acreditava que Rubens seria o contato de Carlos Lamarca, guerrilheiro que atuava no Vale do Ribeira, região de Eldorado, onde ainda residia o “coronel Paiva”. Mas o pai de Rubens não só apoiou o golpe de estado como foi eleito prefeito da cidade pelo ARENA, o partido sustentáculo da ditadura.
Após interrogatório, Paiva foi levado para a sede do DOI-CODI no quartel da polícia do exército, onde teria sido torturado até à morte, segundo o médico Amílcar Lobo, em entrevista de 2013 à revista Exame. O corpo foi enterrado em diferentes locais e finalmente atirado ao mar.
Por décadas, Eunice, que em 1976, aos 47 anos, concluiria curso de direito, liderou campanhas para a divulgação dos arquivos da ditadura. Mas foi só em democracia que o sequestro, prisão, tortura e ocultação de cadáver do marido foram elucidados.
Em 1995, o Congresso Nacional aprovou a lei dos desaparecidos políticos que “reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas no período de 1961 a 1979”. E, em 2014, com a conclusão do relatório da Comissão Nacional da Verdade, instalada para investigar a violação de Direitos Humanos por agentes públicos, é formalmente escrito que Rubens foi morto em 1971.
No documento, que fala em mais de 400 desaparecidos e mortos, foi efetuada uma denúncia formal a cinco militares envolvidos no sequestro que o Supremo Tribunal Federal não acolheu. Eles e os familiares recebem cerca de 1,5 milhões de reais por ano [mais ou menos 250 mil euros] em pensões do estado, segundo investigação do historiador e youtuber Filipe Figueiredo.
No ano seguinte, foi publicado Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva, adaptado ao cinema por Walter Salles, em 2024. Pelo meio, a heroína da história, Eunice Paiva, morreu em 2018, aos 89 anos.
Bolsonaro, vizinho dos Paiva na infância, votou em 2016 pelo impeachment de Dilma Rousseff, também presa e torturada, em nome de Brilhante Ustra, um dos mais notórios torturadores do período, e cuspiu no busto de Rubens erguido no Congresso.