"A guerra que narro no meu livro Canción é uma guerra que nunca considerei minha"

Autor e narrador em simultâneo, Eduardo Halfon volta a ter um livro traduzido em português, agora <em>Canción </em>depois de <em>Luto</em>. A sua família judaica continua a fornecer-lhe o essencial do material para a escrita destes romances não muito longos, mas desta vez a violência que marcou boa parte da história da Guatemala também está presente.
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No seu livro Canción, agora editado em Portugal, fala de Jacobo Arbenz, uma referência da Guatemala que surge em todos os livros de história do século XX, o homem que foi derrotado pelo capitalismo e pela CIA. Este facto, de 1954, ainda marca muito o país atualmente?
Sim, muito. Para mim, Arbenz foi a última grande oportunidade que a Guatemala teve, em vários sentidos. Foi em 1951 apenas o segundo presidente democraticamente eleito. Antes de Arbenz tinham sido quase todos governos militares autoritários.

Era a regra desde o fim da colonização espanhola, no século XIX?
Sim, foi um longo ciclo de governos militares e, de repente, Arbenz com uma plataforma de reforma agrária foi democraticamente eleito. Foi o país que quis essa mudança e necessitava dela.

Não era propriamente um revolucionário, era mais um político que procurava maior justiça social?
Era um homem que notava a terrível pobreza do país. A grande maioria das terras da Guatemala eram de duas ou três empresas americanas - em especial a United Fruit Company -, e o que ele queria era expropriar as terras que não estavam a ser usadas por estas empresas.

A sua memória ainda é acarinhada pela opinião pública ou foi esquecido pelos guatemaltecos?
Depende a quem se pergunta, mas é uma pessoa que marcou claramente a história do país. O que aconteceu foi que o derrubamento de Arbenz aconteceu num período de 24 horas, isto é, a CIA orquestrou um derrubamento fulminante. Ele morre no México, misteriosamente na banheira, e muita gente diz que foi assassinado. Então, começa a guerra na Guatemala, foi a reação do país perante a intervenção americana, a guerrilha foi criada como reação a isto. Os militares que compunham esta guerrilha não gostavam do autoritarismo do governo. Era um governo que se deixava manipular pelos americanos e os militares não gostavam que os americanos decidissem o que se passava no país. Aliás, foram dois ex-militares que tentaram realizar um golpe de Estado. Quando o golpe fracassou, esses dois militares refugiaram-se nas montanhas e foi aí que começou o movimento guerrilheiro que durou 36 anos.

Quando falamos da América Central, da sua Guatemala, mas também das Honduras, de El Salvador, da Nicarágua, podemos dizer que todos os países da região, com a notável exceção da Costa Rica, serviram de teatro da Guerra Fria, de terreno de enfrentamento entre Estados Unidos e União Soviética?
Absolutamente, foi o medo dos americanos de repetir o que se passou em Cuba, daí a intervenção fortíssima na Guatemala, em El Salvador, nas Honduras e no Nicarágua. A Costa Rica, que abdicou de ter forças armadas, foi o único país que conseguiu ficar mais à margem. Esta história bélica é amplamente compartilhada nestes países do centro da América, porque têm histórias muito semelhantes.

O seu avô, lê-se em Canción, foi sequestrado pela guerrilha porque tinha uma posição social elevada. Isto é curioso porque confirma que os turcos - como chamavam na América Latina aos que vieram do Império Otomano, fossem árabes muçulmanos ou cristãos ou até judeus -, foram bem-sucedidos e estavam integrados na sociedade.
O seu trabalho foi o que os promoveu a posições sociais mais altas. Como é que isso se explica? Não há uma explicação fácil. Na minha memória, a comunidade libanesa era muito unida, os melhores amigos do meu avô e os seus parceiros de negócio eram libaneses, judeus e não judeus. O mesmo acontece em El Salvador, a comunidade libanesa é muito grande e muito forte em termos económicos, tal como acontece na Guatemala. Há uma grande união que os protege e que lhes permite progredir. Passou-se o mesmo com as comunidades judias, aliás, a comunidade judia da Guatemala é um ótimo exemplo disso, são 100 famílias, não é muita gente. São judeus que vieram em duas principais migrações, primeiro a árabe e depois a migração polaca-alemã. Recordo-me, por exemplo, da educação que os meus tios receberam, não era suposto integrarem-se. Era suposto que apenas se relacionassem entre eles, os seus amigos deviam ser judeus, assim como os seus parceiros de negócios. Ou seja, era suposto estarem integrados no país, mas sem estarem integrados no país. Aparentam ser guatemaltecos, mas na realidade são judeus.

As suas origens familiares são muito diversas com génese na Europa - judeus asquenazes - e no Médio Oriente - judeus sefarditas - e a sua própria experiência de vida também foi muito construída no estrangeiro. Sente que quando fala da Guatemala nos seus livros, sejam Luto ou agora Canción, não pode correr o risco de estar a perder alguma visão de proximidade?
Nunca me senti próximo da Guatemala, inclusive, saí da Guatemala com apenas dez anos quando fugi com a minha família. Antes disso, crescer judeu num país totalmente católico era muito estranho, todos os meus amigos eram católicos. Desde logo, já me sentia como se fosse um estrangeiro, alguém que pode ver o jogo acontecer, mas não o pode jogar. Por causa disso, nunca me senti muito próximo da Guatemala. Por exemplo, a guerra que narro no meu livro Canción é uma guerra que nunca considerei minha. Nos anos 70, quando vivi na Guatemala, apesar de ter sido a década mais sangrenta, a minha família estava protegida na capital da guerra que se passava nas montanhas. Em 1979/1980 é quando a guerra chega à capital e é aí que entra na minha memória os disparos, os sequestros, mas nada disso tinha existido antes. E justamente quando a guerra penetra a capital, fugimos do país.

Como romancista, quando escreve sobre a sua família nos livros e todos os acontecimentos que descreve, tem alguma liberdade ficcional. Os seus leitores não podem, portanto, acreditar em tudo como factos históricos, mesmo os pormenores sobre a sua família?
Sim, há uma certa liberdade da minha parte. O que faço quando escrevo é narrar uma história de ficção num cenário histórico, ou seja, a guerra é cenário de fundo, mas o drama dentro desse cenário é ficção. O que acontece é que tudo tem de ser verosímil, há muita investigação e muito contexto e, por isso, tenho necessariamente de contar quem foi Arbenz e quem foram os dois militares que criaram a guerrilha. Apesar de haver factos, por exemplo sobre a minha própria família, que só posso confirmar até um certo ponto, tento sempre que seja tudo o mais verosímil possível. Mas não estou a escrever um livro de história ou uma biografia, é ficção e aquilo que me interessa é transmitir as sensações verosímeis que o cenário transmite.

Quando em Luto fala do seu avô que foi forçado a trabalhar numa fábrica de aviões nazis e ajudou a sabotá-los, está a contar um facto?
Sim, na medida do que ouvi contar.

Como foram recebidos os seus livros na Guatemala?
Foram bem recebidos, mas digamos que a Guatemala não é um país com muitos leitores, mas há pessoas que leem os meus livros. Este livro em particular, Canción, entrou no tema da guerra, após ter escrito já 15 livros onde nunca quis tocar nesse tema. Sempre considerei que era um tema que via de longe, até que encontrei este personagem, o sequestrador do meu avô, Canción. Foi este personagem que me "atirou" para a história da Guatemala. Todavia, na Guatemala, o tema da guerra e o que aconteceu durante a guerra ainda é uma ferida aberta. Há um silêncio imposto por um determinado setor da população que não quer falar do tema e que prefere deixá-lo no passado. São pessoas que, inclusive, negam os massacres e o genocídio que aconteceu e sobre o qual existem várias provas e evidências. Foi uma política de arrasar aldeias inteiras e matar indiscriminadamente os indígenas. Os indígenas são a grande maioria da população, mas ainda não são atualmente representados nas eleições políticas. Não há representação real, há muito analfabetismo e uma falta de educação tremenda. Mas quando finalmente toquei o tema da guerra, houve muita polémica. Quando dou entrevistas há ameaças, as pessoas veem-me como um guatemalteco que viveu fora do país e que nunca realmente pertenceu à Guatemala.

Por causa disso não lhe conferem autoridade para falar sobre o assunto?
Exatamente, até porque estou longe e as repercussões não são tão diretas, mas se estivesse na Guatemala seria perigoso. Ainda hoje há um êxodo massivo de jornalistas da Guatemala porque recebem ameaças e porque muitos foram assassinados.

Por isso diz que Arbenz representou um momento de esperança que nunca mais se voltou a repetir na Guatemala?
Não, nunca mais se repetiu. A guerra foi um fracasso, um fracasso que durou 36 anos, e houve apenas uma outra oportunidade. Quatro mulheres que encabeçaram a tarefa de levar a tribunal todos os generais implicados nos massacres e conseguiram-no. Havia um organismo independente que se dedicava a combater a corrupção, até que entrou um presidente que encerrou este organismo, com o apoio de Trump, e estas quatro mulheres muito corajosas tiveram de sair do país e estão protegidas pela CIA.

O seu projeto literário passa por continuar a explorar a família?
Creio que sim. Por exemplo, em 2008 lancei um livro chamado El Boxeador Polaco que conta a história do meu avô polaco que passou por Auschwitz. Esse livro, curiosamente, termina em Portugal e é nesse livro que nasce este narrador Eduardo Halfon. Os meus últimos sete livros são pequenas partes de um único projeto, porque todos estes livros se cruzam uns com os outros, estão muito relacionados. Na realidade, é um só romance em marcha que ando a publicar, não sei quando termina porque nada foi planeado.

Depois dos Estados Unidos, vive agora na Europa?
Vivi nos Estados Unidos oito anos, depois estive em França e, neste momento, estou em Berlim.

Eduardo Halfon
D. Quixote
112 páginas
11,90 euros

Eduardo Halfon
D. Quixote
120 páginas
13,30 euros

leonidio.ferreira@dn.pt

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