Eis um pequeno conto moral. David, jovem estudante, procura jogos no seu computador, em particular de combate militar. Devido a alguma monumental falha informática, entra nos circuitos ultrassecretos do sistema de defesa dos EUA, incluindo a gestão dos mísseis apontados à Rússia. Encarando tudo aquilo como uma diversão inesperada, segue as hipóteses oferecidas pelo computador e começa a planear a destruição do inimigo... A certa altura, percebe que o jogo se transformou em coisa muito verdadeira e que os americanos estão mesmo à beira de atacar a Rússia com armas nucleares. Desesperado, David questiona o próprio computador, perguntando se tudo aquilo é a realidade, ou apenas um jogo. A máquina responde-lhe: “Qual a diferença?”.Atenção, há uma nota falsa na minha descrição: não se tratava da Rússia, mas da União Soviética. Isto porque o nosso herói, interpretado por Matthew Broderick, vivia essa inquietante aventura em 1983, no filme Jogos de Guerra (título original: WarGames), realizado por John Badham..Com chancela de um grande estúdio de Hollywood, Metro Goldwyn Mayer (na altura associado à United Artists), Jogos de Guerra é a prova eloquente de uma verdade industrial e comercial nem sempre reconhecida: com muito ou pouco talento, o cinema mais popular, ora realista, ora fantasista, sempre teve uma dimensão eminentemente política, refletindo os medos e as esperanças dos seus espectadores..2025 vai renovar esse poder da ficção, remetendo-nos, ainda que de forma ambígua, para os cenários atribulados da nossa contemporaneidade. Vem a propósito citar o oitavo capítulo de Missão Impossível, o filme com Tom Cruise que chegará às salas de todo o mundo no dia 25 de maio (não surpreenderá se for o título de encerramento em Cannes, tendo em conta que o festival decorre entre os dias 13 e 24). De facto, desde o filme inaugural da saga, realizado por Brian De Palma em 1966, Missão Impossível tem sido um espelho perverso deste mundo em que o imaginário do espetáculo, para além de uma primitiva descrença nos protagonistas da cena política, não se inibe de lidar com o pânico da ameaça nuclear. Com a proeza de, em tempos de consagração de muitas mediocridades juvenis, conseguir preservar o “velho” Tom Cruise (celebrará 63 anos em 2025) como uma das poucas estrelas de cinema de dimensão realmente global..A sequela de Missão Impossível poderá ser uma sedutora peça de “entertainment” (como era, aliás, o capítulo nº 7), mas não deixa de ilustrar um certo enquistamento da produção. A saber: a dependência dos mercados de uma política de cópias, derivações e continuações dos mesmos títulos e “franchises”. Em 2025 regressarão Capitão América, Karate Kid, Parque Jurássico, etc. - sem esquecer uma Branca de Neve com intérpretes de carne e osso. Tudo isto enquanto persiste a discussão sobre a sucessão de James Bond, com os respetivos produtores (a família Broccoli) e distribuidores (Amazon-Prime Video) em desacordo conceptual, continuando a adiar a escolha de um novo ator para representar o Agente Secreto 007..O valor dos independentes.O panorama das plataformas de “streaming” não serve de compensação a este sistema cada vez mais distante das clássicas paixões cinéfilas. Entenda-se: capaz de manter alguma relação dinâmica, também comercial, com a memória dos filmes..Eraserhead (1977): vamos poder rever os começos de David Lynch..Entre nós, a par da diversificação da oferta de estreias, a manutenção dessa relação tem pertencido quase em exclusivo ao setor dos chamados independentes da distribuição e exibição. Para nos ficarmos pelos exemplos imediatos, lembremos que o começo de 2025 vai ser marcado por importantes ciclos retrospetivos de Jacques Demy e David Lynch - do primeiro sendo mesmo possível conhecer as suas raras curtas-metragens; no caso do segundo, incluindo Eraserhead - No Céu Tudo É Perfeito (1977), a longa-metragem de estreia..A aventura do jovem David no filme de 1983 era também premonitória de uma drástica mudança de paradigma audiovisual. Depois dos espectadores formados nas salas escuras (muito antes das plataformas, quando a presença do cinema nas televisões era escassa), vieram os utilizadores de diferentes ecrãs, omnipresentes através de computadores e “smartphones”. Há, por isso, todo um sistema de consumo dos filmes cada vez mais ameaçado pela inércia dos setores que encaram as salas, não como um património que importa revalorizar, apenas como uma etapa de “passagem” para as plataformas..Será que só podemos esperar a morte do cinema tal como existiu ao longo de mais de um glorioso século de criatividade e diversidade? Amante do paradoxo, Jean-Luc Godard dizia que esperava tal morte “com otimismo”. De forma menos poética, podemos perguntar onde estão as políticas culturais disponíveis para pensar a complexidade dos problemas envolvidos - a começar pela questão básica da educação, ou melhor, daquilo que Martin Scorsese já chamou, com toda a pertinência, “literacia visual”.