Uma câmara que interpela, colada aos corpos e à alma dos atores.
Uma câmara que interpela, colada aos corpos e à alma dos atores.

"A Doce Costa Leste". Um anjo na estrada americana

Cannes 2023 ainda a escoar cinema pelas nossas salas. Esta semana, 'A Doce Costa Leste', o filme que revela Sean Price Williams e confirma a sua estrela, Talia Ryder. A história de uma liceal a fugir numa América perdida com cinema, política e violência. 
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O crescer-da-idade no formato da genealogia daquilo a que se entende de indie americano. Mas antes de mais nada, há que tentar perceber se o gesto de Sean Price Williams, diretor de fotografia de gente como os manos Safdie, por exemplo, não será uma espécie de último hurrah de uma maneira de emoldurar narrativas americanas. Esse indie que estará gasto tem seguramente uma celebração aqui. Celebração essa consentida com emoção e uma ternura quase nostálgica. Como se já não fosse possível acreditar numa pureza da própria essência de um tipo de cinema que já parece jurássico. E, para isso, é preferível sermos condescendentes ou românticos na abordagem a esta proposta de road-movie. Ou seja, deixamo-nos ir na viagem de uma jovem estudante em school trip da secundária.

A dada altura, a rapariga, Lilian, afasta-se dos colegas de escola e vê-se dentro de uma fábula tão violenta como suave na costa leste dos EUA. Uma suavidade que tem mesmo algo de absurdo, mas um absurdo, como o título indica, doce. Ela vai ao encontro de uma certa América, às vezes caótica mas quase sempre perto da mais ignóbil violência humana. A dada altura, é uma descoberta dela própria, talvez a partir do momento em que olha para a câmara e diz-nos a cantar que é uma gata. A transformação também se explica pelos encontros: primeiro com ativistas anarquistas que têm piercings no pénis e que são sobretudo artistas (um deles define-se como “artivista”) anti-fascistas , depois um professor de literatura do séc. XVIII interpretado  por Simon Rex, herói do cinema de Sean Baker, perfeito na pele de um fascista culto mas trafulha até à medula e, finalmente uns caricaturais cineastas negros (Jeremy O.Harris e Ayo Edebiri) que a escolhem como estrela de um drama de época armado ao pingarelho. Antes do regresso a casa, a possibilidade de um encontro sinistro com um grupo islâmico eventualmente queer.

O espelho mágico

Obviamente que esta fugida de casa (e da sua Carolina do Sul) de Lilian é uma vénia ao universo de Alice de Lewis Carroll com uma embalagem pícara que parece inspirada em Wild at Heart - Um Coração Selvagem, de David Lynch. Talvez seja até demasiado óbvio, demasiado descarado mas a vontade, a boa vontade, de quem for à boleia pode amenizar as resistências. Neste país das maravilhas a violência tem algo de cartoonesco, mesmo quando o tom ameaçador esteja lá. De certa maneira, a inclusão de uma fruição de túneis (que são literais) fazem com que a caução do retrato social ou político desta América dividida esteja sempre mais perto da paródia do que qualquer outro registo. O nosso anjo, inclusive quando peca, sai sem ser chamuscado nesta fantasia. Mesmo quando o tiroteio ou os papões andam por perto. E, como a canção diz (cantada pela própria atriz), ela flutua pelo ar, sem feridas, sempre a amar o espelho noturno, mesmo quando chega a meia-noite.

Uma personagem fascinante, só possível ter aderência total graças à gestão de afetos de uma atriz como Talia Ryder, que já era majestosa em Nunca Raramente às Vezes, de Eliza Hittman, esse sim um dos maiores filmes independentes americanos dos últimos anos. Ryder, que não tem laços familiares com Winona Ryder, conjuga uma ideia de inocência com perdição, perversidade com carinho. É coisa dela, nota-se, muito para além do que o guião imaginava. Será justo pensar-se que é um rosto, um corpo, que transcende o filme. Talia merecia que o filme fosse menos trapalhão na sua abertura de portas entre os diversos capítulos. Merecia também que a descrição do caos não fosse tão feita no joelho, tão pouco vital. Será certamente um dos nomes a seguir com obsessão no cinema americano de autor, isto se tiver uma equipa de agentes e publicista que a saiba guiar.

Apoiado pela crítica

Em Cannes, o ano passado na Quinzena dos Cineastas, terá passado algo ao lado, mas nos EUA conseguiu ter tração graças a um trabalho de promoção em jeito de tour. E são muitos a acreditar que o papel da crítica num filme como este ainda pode ser importante. Se há filme que precisa de um certo mimo é The Sweet Coast. Bom case study para se perceber a força da crítica nos EUA. O que é certo é que um ano depois, graças à fama meteórica de Jacob Elordi, cujo pequeno papel não passa despercebido, teria tido um outro impacto.

Mesmo com todas as suas fragilidades, A Doce Costa Leste revela um novo cineasta cujas liberdades formais são todas elas excêntricas e bem caprichosas. Nada contra, alguma coisa a favor. Fica-se então num meio termo, provavelmente mais perto da frustração na medida em que há detalhes exaltantes. Apetece dizer que há uma partícula do filme que se confunde com um estado onírico embriagado. Uma contemporaneidade que não é postiça. E é por aí que essa ideia de América perdida faz algum sentido...

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