A comédia é apenas uma forma de tragédia
As fascinantes singularidades de um filme como Não Olhem para Cima podem começar por servir para desmentir os lugares-comuns que, ao longo deste século, a produção regular de aventuras de super-heróis (com chancela de Marvel & Cª) instalou no mercado e, mais do que isso, no imaginário cinematográfico. O mais insidioso desses lugares-comuns tenta fazer crer que o gosto do espectáculo ou o imprevisível da aventura só podem ser satisfeitos através de personagens adaptadas de algum videojogo ou banda desenhada, com arranha-céus a desmoronar-se, cena sim, cena não...
De um ponto de vista comercial, sempre indissociável das peculiaridades artísticas de cada projeto, Não Olhem para Cima é mesmo um filme que recupera o valor nominal dos atores como trunfo fundamental. Convenhamos que não é todos os dias que deparamos com um elenco em que figuram Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Cate Blanchett, Mark Rylance e Meryl Streep... Isto para apenas citar vencedores de Óscares, já que encontramos ainda, por exemplo, Timothée Chalamet, Jonah Hill, Ron Perlman e a cantora Ariana Grande.
Sem esquecer que, no plano industrial, este é também um desses objetos "esquizofrénicos" gerados pela conjuntura audiovisual em que vivemos a nossa condição de espectadores: parece um empreendimento típico de um grande estúdio clássico, mas tem chancela da Netflix. Com um complemento que está longe de ser indiferente: podemos descobri-lo nas salas algumas semanas antes de estar disponível (a partir do dia 24) naquela plataforma de streaming.
Há ainda um saboroso pormenor sarcástico. De facto, como bem sabemos, os filmes de super-heróis (mesmo os mais interessantes) têm vindo a ficar formatados numa sinopse de bizarro minimalismo. A saber: o mundo vai acabar... Pois bem, dir-se-ia que o argumento de Não Olhem para Cima, assinado pelo próprio realizador, Adam McKay (tendo como base uma história de autoria partilhada com David Sirota), também foi concebido para mobilizar um super-herói de poderes mais ou menos digitais: o mundo vai mesmo acabar porque há um cometa que se aproxima velozmente do planeta Terra, não podendo acontecer outra coisa que não seja, no espaço de seis meses, um impacto brutal e a destruição de todas as formas de vida...
Desta vez, porém, para lá da imagem cada vez mais nítida e ameaçadora do cometa a aproximar-se da bola terrestre, indefesa na sua cósmica solidão, não há figuras aladas, cuspindo fogo ou diálogos monossilábicos, a percorrer o firmamento. Tudo começa, aliás, pela surpresa, rapidamente transfigurada em pânico, dos dois cientistas (DiCaprio e Lawrence) a observar aquele traço de luz que veio assombrar a serenidade do seu mapa celestial.
Estamos, então, perante uma comédia? Sim, sem dúvida, embora seja quase impossível não ficar contaminado pelo caudal de desencanto e amargura que vai pervertendo todas as situações. Acontece que, tanto os responsáveis políticos como os rostos da informação televisiva começam por tratar os cientistas - e as várias confirmações do seu diagnóstico apocalíptico - como um pretexto para reforçar os seus poderes mediáticos.
Há mesmo uma presidente dos EUA que, face à iminência do fim do mundo, se põe a avaliar as vantagens ou desvantagens que isso lhe poderá trazer nas eleições intercalares... E uma apresentadora de televisão que trata os convidados como marionetas de um show em que a única coisa que conta é a ridicularização de quem é entrevistado... Acrescente-se que tais personagens são interpretadas, respetivamente, por Meryl Streep e Cate Blanchett, cada uma delas no pleno e sofisticado domínio dos seus dotes de comediantes.
Não necessitaremos de uma qualquer declaração de intenções para compreender que Não Olhem para Cima pouco ou nada tem que ver com qualquer "previsão" de ficção científica. Nem sequer faltam os negacionistas do apocalipse que, à boa maneira dos apoiantes de Donald Trump, usam bonés, agora não com a frase "Make America Great Again", mas sim a expressão "Don"t look up" (título original do filme).
Adam McKay já tinha encenado essa cumplicidade obscena entre algumas instâncias de poder e certas formas de gerar e difundir informação: A Queda de Wall Street (2015) desmontava a crise financeira de 2008, enquanto Vice (2018) observava o papel de Dick Cheney durante a presidência de George W. Bush. Não Olhem para Cima prolonga a sua visão cáustica, e tanto mais quanto o filme se aproxima de uma tradição dramática profundamente enraizada em Hollywood.
Emerge, assim, a herança crítica de Billy Wilder, através de filmes como O Grande Carnaval (1951) ou Testemunha de Acusação (1957). Seja como for, é sobretudo o Dr. Estranhoamor (1964), de Stanley Kubrick, sobre as armas nucleares, que surge como modelo inspirador de um cinema capaz de lidar com a tragédia final da humanidade através de narrativas do mais gélido humor. Até porque, convém não esquecer, este é um filme atravessado por um tema de perturbante atualidade: o que é a verdade? Ou antes: até que ponto vivemos numa verdade produzida pela informação global que recebemos?
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