Agnès Jaoui entre os sobressaltos do drama e da ironia.
Agnès Jaoui entre os sobressaltos do drama e da ironia.

A comédia da outra Barbie

Na abertura da Quinzena dos Cineastas foi revelado 'Ma Vie, Ma Gueule', filme póstumo de Sophie Fillières: uma comédia temperada por algum dramatismo em que se destaca a interpretação de Agnès Jaoui.
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A Quinzena dos Cineastas (ex-Quinzena dos Realizadores) continua a ser um fundamental evento de Cannes, ainda que independente do festival - trata-se de uma organização da SRF (Société des Réalisateurs de Films) e tem como objetivo principal a divulgação de filmes de todas as origens e sensibilidades criativas, quase sempre de cineastas menos conhecidos (historicamente, em vários casos, antecipando a sua presença na corrida para a Palma de Ouro).

A abertura oficial da Quinzena deu a conhecer Ma Vie, Ma Gueule, filme que ficará como testamento simbólico de Sophie Fillières, atriz, argumentista e realizadora, falecida a 31 de julho de 2023, contava 58 anos. Vítima de doença prolongada, Fillières concluiu a rodagem, mas já não pôde acompanhar os trabalhos de pós-produção, cuja coordenação seria assumida pelos seus filhos, Agathe e Adam Bonitzer, ambos presentes na sessão do Théâtre Croisette.

Estamos perante uma curiosa e desconcertante variação sobre os modelos tradicionais da comédia romântica. No seu centro encontramos a personagem de Barberie Bichette, uma mulher de 55 anos que vive numa rede de relações em clara decomposição: com a filha, num corte de gerações que nada parece poder apaziguar; no trabalho, num regime de crescente desentendimento com os colegas. Além de que Barberie não se dá muito bem com o facto de toda a gente insistir em chamar-lhe… Barbie!

Não é apenas um retrato psicológico (no que, convenhamos, seria razoavelmente esquemático), mas uma suave parábola existencial: as perspetivas mais amargas, dos cenários do hospital ao horizonte indizível da morte, vão sendo superadas, ou melhor, contaminadas por uma ironia que relativiza todas as situações. Mesmo quando sentimos que o filme se perde um pouco no desenvolvimento da sua estrutura narrativa, Barbie resiste como figura alheia aos clichés em que tentam enredá-la, quanto mais não seja porque é defendida no ecrã por Agnès Jaoui, atriz com o talento necessário e suficiente para integrar as peripécias mais bizarras sem nunca alienar a dimensão humana da personagem.

Ma Vie, Ma Gueule fica, assim, como testemunho de uma vertente tradicional que, em boa verdade, o cinema francês tem sabido preservar. A saber: uma visão ligeira e elegante das personagens, preservando, de modo discreto mas incisivo, os contrastes da crónica de costumes.

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