Jean Seberg e Warren Beatty em Lilith e o seu Destino (1964): o romantismo, provavelmente.
Jean Seberg e Warren Beatty em Lilith e o seu Destino (1964): o romantismo, provavelmente.

A cinefilia ainda é o que era

A herança de Jean-Luc Godard (1930-2022) continua a estar em destaque nas salas de cinema. Agora, até meados de abril, podemos descobrir mais de duas dezenas de títulos de alguns dos cineastas que marcaram a sua trajetória criativa: Hitchcock, Hawks, Renoir, etc.
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Cerca de um ano e meio depois da sua morte, Jean-Luc Godard está presente na atualidade do mercado cinematográfico. Em várias cidades do país, continua a decorrer um ciclo de 11 dos seus filmes em cópias restauradas (um deles, Detetive, de 1985, em estreia absoluta no circuito comercial). Agora, como um eco histórico e simbólico desse ciclo, a Medeia Filmes reforça a sua proposta anterior, apresentando no cinema Nimas, em Lisboa (até 17 de abril), um conjunto de 27 títulos reunidos sob o lema “Uma história do cinema segundo J-LG”.

De O Carteirista (1959), de Robert Bresson, a  Fatalidade (1931), de Josef von Sternberg, cruzando datas e estilos, imaginários e imaginações, eis uma antologia em aberto, capaz de nos garantir que a cinefilia - entenda-se: o gosto, e também o respeito, pela infinita diversidade dos filmes e das suas histórias - persiste na difusão do cinema e resiste aos lugares-comuns do marketing dominante.

O título do ciclo remete para a obra monumental de Godard, História(s) do Cinema (1988-1998), exercício genial e paradoxal de um criador capaz de usar os recursos típicos do video para revisitar as suas próprias memórias enquanto espectador. Objetivo principal: tentar compreender o labor dos filmes (espelho e pensamento) no interior das convulsões do século XX, não por acaso apelidado de “século do cinema”.

Vale a pena recordar que o desejo ambíguo de manter uma prática de enciclopedista se manifesta muito cedo em Godard, mais precisamente em 1978, quando aceita dar uma série de “aulas” ou “palestras” no Conservatório de Arte Cinematográfica de Montréal, tendo como ponto de partida o confronto de clássicos do cinema com alguns dos seus próprios filmes. Os textos desses encontros foram reunidos num volume com um título premonitório: Introdução a uma Verdadeira História do Cinema (ed. Albatros, Paris, 1980).

Hitchcock & etc.

Os filmes agora programados refletem a visão plural de Godard, dos tempos de crítico nas páginas dos Cahiers du Cinéma, até referências que, direta ou indiretamente, acompanham todo o seu trabalho. Alfred Hitchcock, que Godard evocou como o “maior criador de formas” nas suas História(s), está presente através de O Desconhecido do Norte-Expresso (1951) e Marnie (1964) - o par improvável, mas fascinante, de Marnie, Tippi Hedren/Sean Connery, surge no poster do ciclo.

A referência hitchcockiana transcende a imagem de marca do “mestre do suspense”. Aliás, se Godard e os seus companheiros dos Cahiers du Cinéma tiveram um papel decisivo na valorização de alguns mestres clássicos de Hollywood, foi justamente porque souberam mostrar como o seu talento excedia uma competência “artesanal” ou “espectacular”, sendo indissociável de uma visão filosófica do mundo que começava numa aguda consciência moral do cinema e dos elementos específicos da sua linguagem narrativa.
Daí a presença igualmente importante de autores como Howard Hawks (Scarface, 1932), Orson Welles (A Dama de Xangai, 1947), Joseph L. Mankiewicz (Sangue do Meu Sangue, 1949, e Um Americano Tranquilo, 1958), Otto Preminger (O Castigo da Justiça, 1950, e Santa Joana, 1957), Nicholas Ray (Cruel Vitória, 1957), Samuel Fuller (Quarenta Cavaleiros, 1957), Anthony Mann (O Homem do Oeste, 1958) e John Ford (Terra Bruta, 1961).

São títulos, alguns raros nas salas escuras, que ajudam a compreender uma verdade muitas vezes recalcada ou demagogicamente alterada: não há em Godard, como não há na Nova Vaga, qualquer resistência cega aos modelos clássicos de Hollywood. Daí um sublinhado especial para a presença no ciclo de nomes como Robert Mulligan e Robert Rossen, respetivamente com Amar um Desconhecido (1963) e Lilith e o seu Destino (1964). São filmes marcantes dos anos 60, refazendo e transfigurando o mito do par romântico - Natalie Wood/Steve McQueen no primeiro, Jean Seberg/Warren Beatty no segundo -, ao mesmo tempo que projetam a entrega amorosa em cenários que desafiam as perceções correntes dos desejos humanos. Nesta perspetiva, o filme de Rossen, um mestre tão mal conhecido, é das coisas mais belas que alguma vez foram registadas em película.

Memórias felizes

O ciclo não esquece a produção soviética, com as duas partes de Ivan, o Terrível (1944-1958), de Sergei Eisenstein, e Poema do Mar (1958), de Yuliya Solntseva, a partir de um argumento de Aleksandr Dovjenko. Encontramos também filmes fulcrais na definição de uma modernidade inseparável das convulsões das novas vagas, mesmo se as suas singularidades lhe conferem a vibração de verdadeiros monumentos sem equivalente: será o caso de Deserto Vermelho, de Michelangelo Antonioni, e Gertrud, de Carl Th. Dreyer - e se a cronologia é também uma via de entendimento da história do cinema, então devemos lembrar que são ambos de 1964.

Não faltam outros grandes individualistas que Godard sempre admirou. Poderemos, assim, contemplar a verdade íntima da nossa vida fantasmática com Jean Cocteau (Orfeu, 1949), redescobrir as certezas e ilusões da felicidade como matéria obsessiva de Jean Renoir (Helena e os Homens, 1956), explorar o auto-retrato angustiado e feliz de Charlie Chaplin (Um Rei em Nova Iorque, 1957), arriscar a passagem do real para o surreal encenada por Luis Buñuel (O Anjo Exterminador, 1962), sem esquecer a redescoberta do realismo italiano através de Ermanno Olmi (Os Noivos, 1963).

Dois nomes essenciais completam este panorama: Fritz Lang e Max Ophüls. O primeiro, que Godard filmou “no seu próprio papel” em O Desprezo (1963), surge com Só Vivemos uma Vez (1937), reflexão radical sobre os caminhos atribulados da justiça. O segundo está presente através de O Prazer (1952), inspirado em Maupassant, por certo um dos filmes mais citados nas História(s) do Cinema - a sua frase final talvez possa servir também como ex-libris do legado de Godard: “A felicidade não é alegre”.

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