A casa de Lanzarote que ainda cheira ao avô Nobel de Ana
"Aqui as gavetas têm sempre surpresas lá dentro, sempre foi assim e ainda é", contava esta manhã Ana Matos, por telefone, ao DN. "Às tantas, abri uma e dei com uma edição antiga da revista de bordo da Iberia. Tinha na capa uma fotografia dele e o título era A rebeldia do Nobel. Emocionei-me porque nunca tinha visto aquilo e batia tudo tão certo."
Há mais de sete anos que a neta mais velha de Saramago não passava uma noite na casa de Lanzarote. É filha da filha da sua primeira mulher. Fê-lo por duas vezes depois da morte, em 2010, do Nobel português - uma em viagem sentimental com a mãe, outra para assistir à inauguração da biblioteca com o nome do avô.
E agora tinham passado sete anos, tempo para as paredes transpirarem mais saudade que ausência. "Assim que cheguei fui ao escritório dele e afaguei a cadeira de couro. Não me sentei, mas fiquei ali uns minutos a lembrar-me da pose dele, depois de almoço, com os pés por cima da mesa a ler o jornal." A seguir abriu a gaveta. E emocionou-se com um tesouro.
Ontem à noite, uma comitiva de políticos e jornalistas portugueses viajou de Lisboa para Lanzarote para assinalar os 20 anos de atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago. António Costa seguia no avião, e hoje haveria de encontrar-se com Pedro Sánchez, chefe de governo espanhol. Celebraram juntos a vida de um escritor que foi de todos. E estavam lá todos para celebrá-lo.
Mas, na casa onde o escritor escreveu alguns dos seus mais relevantes trabalhos - e onde se despediu do mundo -, dormiram apenas quatro pessoas. Pilar del Río, pois claro, que aquele teto é seu. Também ficou lá o diretor da Fundação Saramago, José Machado Letria, e o realizador do documentário José e Pilar, Miguel Gonçalves Mendes, visita habitual de casa. E Ana, que sentiu que aquele mundo ainda cheirava ao avô - e se sentiu feliz por isso.
Há vinte anos, Saramago recebeu a notícia do Nobel longe, estava na feira do livro de Frankfurt - em Lanzarote ficara apenas Pilar. Ontem à noite, a viúva do escritor pegou nos seus quatro convidados já ensonada e andou a dar uma volta com eles pela casa.
O edifício recebe hoje visitas, e Ana impressionou-se por ver ali o passado e o futuro ao mesmo tempo. "Há os livros empilhados, abertos onde o meu avô os tinha deixado, há a caixa dos óculos na posição de sempre, há uma máquina de café já arranjada. E também a tecnologia de segurança, que mostra que o espaço dele não é só dele, é universal."
É tudo muito diferente das memórias que Ana tem daquele espaço. Ali ela passava os natais, ano sim, ano não. Ali passou um mês de férias, nos verões de 2003 e 2004. "E as minhas memórias não são literárias, são muito concretas. Dos pequenos-almoços e dos jantares, em que discutíamos o tempo e os grandes problemas do mundo."
Discutiam os índios de Chiapas e o futuro de Timor, no fundo as preocupações sociais, éticas e políticas que Saramago transportava para os textos, só que em formatos diferentes.
Esta manhã, quando acordou, Ana sentiu um arrepio quando se lembrou de como o avô a vinha acordar cedo nas férias, para que não perdesse "o dia nem a vida". O mundo inteiro a prestar tributo ao único Nobel que a língua portuguesa produziu e ela a pensar que naquele roçar do dedo pela porta do quarto onde voltou a dormir esta noite cabia toda a vénia que o mundo lhe devia. "O meu avô nunca desperdiçou o dia. O meu avô nunca desperdiçou a vida."