O tempo romântico e o que não fizemos com ele.
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"A Besta". Léa Seydoux lembra-se das suas vidas passadas

Adaptação 'sui generis' da literatura de Henry James, 'A Besta' faz colidir entre si ficção científica, drama, romance e 'thriller', num épico estranhamente sedutor. É sem dúvida o filme mais ambicioso de Bertrand Bonello até à data.
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Quem diria que uma novela de Henry James com menos de 100 páginas daria um filme de longa duração, recheado de épocas e géneros. E, porém, nem A Fera na Selva é apenas um livro de poucas páginas – trata-se mesmo de um dos maiores clássicos jamesianos –, nem A Besta, de Bertrand Bonello, é apenas um filme que se distingue pela proeza de conseguir mover-se entre registos diferentes e erguer uma estrutura de aparência épica. Inspirando-se na premissa dessa novela de 1903, sobre um homem que confessa uma angústia secreta a uma conhecida, o realizador francês construiu uma viçosa peça de melancolia enigmática, que parece estender aquele momento do livro em que os estranhos, afinal conhecidos, se (re)encontram: “Dava-lhe a impressão de ser a sequela de alguma coisa a que tivesse perdido o início. Sabia que era uma continuação, e por hora aceitava-a gratamente como tal, mas uma continuação do quê, não conseguia adivinhar (...)”. 

A Besta funciona precisamente dentro desse sistema de impressões vagas e elipses, em que uma mulher, interpretada por Léa Seydoux, e um homem, a que o jovem britânico George MacKay dá rosto, se encontram em três épocas distintas – 1910, 2014, 2044 –, prolongando uma ideia de romance não concretizado, devido ao medo passivo dela. Ou seja, neste caso é a personagem feminina que vive com um pressentimento de desastre futuro. 

O ano que enquadra os restantes é 2044, quando a personagem de Seydoux, Gabrielle, a viver numa Paris elegantemente pós-apocalíptica e controlada pela Inteligência Artificial, é submetida a um procedimento cirúrgico que visa torná-la apta para o mercado de trabalho. Um procedimento que, no fundo, é um método de purificação da psique, com o propósito de a desembaraçar do “equipamento emocional” humano, de maneira que preencha os requisitos do ideal da máquina. E assim, durante esse processo, Gabrielle vai-se lembrando das suas vidas passadas, entre a versão de 1910, em que é uma pianista na Paris da Grande Inundação, e 2014, período ambientado em Los Angeles, onde é uma modelo aspirante a atriz. 

Resumir A Besta nesta divisão temporal é ingrato, porque o filme de Bonello acontece nos detalhes mais subtis, desde a inexpressividade do rosto de uma boneca da Belle Époque, relacionada com um androide de 2044, aos “monstros” naturais e tecnológicos que assombram a nossa existência. O que importa sublinhar é a estranheza de tudo isto, o trabalho conceptual por trás de uma fachada intrigante, que seduz como um sonho frio, a refletir as proporções do medo que nos paralisa. O que também equivale a dizer que não é um objeto para todos os gostos: o cineasta de Apollonide não facilita a apreensão desta viagem, antes incita a que nos concentremos no fio condutor que é a estupenda angústia de Gabrielle/Seydoux, matéria altamente literária. “Os grandes romances são de fantasmas”, diz uma voz artificial em A Besta. E é talvez esta sinalizada fantasmagoria romântica que permite pensar o filme como uma bizarra história de amor, com outros estremecimentos secundários – de resto, a palavra “sentimento” é uma constante nos lábios das personagens. 

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