A Berlinale num ano de transição
À procura da descoberta, da surpresa. É assim que se deve ir para a Berlinale, um festival em fim de ciclo – o último ano do diretor artístico Carlo Chastrian, alguém que conseguiu tornar mais elitista a competição e criar a secção Encontros, tentativa de mostrar um cinema de maior risco. Fazendo agora o balanço deste reinado agora interrompido de forma pouco consensual, percebe-se que o red carpet do festival sofreu um “downgrade”, coisa que não traz mal ao mundo. Percebe-se também que foi tubo de ensaio para salvaguardar uma política de autores, desde cineastas emergentes a nomes já acompanhados pela sua equipa de programadores desde os tempos do Festival de Locarno.
Berlim, tal como nos últimos anos, não tem tido sorte com os timings: os estúdios de Hollywood preferem colocar os seus filmes premium em Veneza devido às estratégias das campanhas de marketing para os Òscares e inclusive os autores de renome do cinema americano percebem que é muito mais vantajoso o calendário de Cannes. Fica-se assim refém de algumas sobras, muitas deles, tal como este ano, sem o brilho da estreia mundial – são filmes já com o carimbo Festival Sundance.
A abertura esta noite terá cunho irlandês: Small Things Like These, de Tim Mielants, a partir de argumento de Enda Walch baseado no celebrado romance homónimo de Claire Keegan. Cilian Murphy, que é neste momento o favorito ao Óscar por Oppenheimer, apesar de ter concorrência séria com Paul Giamatti em Os Excluídos, é o protagonista num filme produzido e feito pelo gangue de Peaky Blinders. Matt Damon, um dos produtores, já anunciou a sua presença na gala de abertura. O filme tem honras de abertura mas não deixa de estar em competição.
O que se pode salivar...
Expectativa positiva para o primeiro filme em inglês do mexicano Alfonso Ruizpalácios, selecionado com La Cocina, rodado numa cozinha de um restaurante de Nova Iorque. Trata-se de mais um “foodie movie”, neste caso a preto e branco e com Rooney Mara num dos principais papéis. Igualmente algo mediático parece vir a ser Another End, de Piero Messina, conto futurista de uma sociedade em que é possível criar versões de nós próprios. Gael García Bernal, Renate Reinsve e Bérenice Bejo têm então múltiplos papéis. Messina já tinha conquistado muito boa gente com A Espera, onde brilhava Juliette Binoche.
Felizmente, a seleção oficial acredita no humor e há uma comédia selecionada: L'Empire, de Bruno Dumont, filme francês com produção minoritária da Rosa Filmes de Joaquim Sapinho. Sabe-se que é uma sátira cruel aos filmes de ficção-científica americanos e que a saga Star Wars é visada diretamente. O problema é que o humor de Dumont não é para todos. No elenco está Camile Cottin e o repetente Fabrice Lucchini, ator em grande momento de carreira.
Mas Dumont não é o único nome consagrado, a competição tem ainda Hang Sangsoo com A Traveler's Needs, com Isabelle Huppert; Abderrahmane Sissako com Black Tea, Mati Diop com Daoé e Olivier Assayas com a comédia Hors du Temp, com Vincent Macaigne a fazer uma espécie de versão do realizador.
Do pouco que chega dos Estados Unidos, a A24 conseguiu alocar uma das suas apostas: A Different Man, de Aaron Schimberg e tem uma das novas vedetas de Hollywood como protagonista, Sebastian Stan. A mesma label norte-americana tem no Panorama outro dos seus triunfos de Sundance, Love Lies Bleeding, de Rose Glass, thriller nos meandros do culturismo no feminino e erotismo queer. Kristen Stewart é a estrela e vai estar presente. E ainda mencionando produção americana é curioso pensar como a Warner não tenha apostado em Berlim para colocar aqui Challengers, de Luca Guadagnino, filme que foi retirado de Veneza devido à greve dos atores ou porque a Universal não tenha insistido para Guerra Civil, de Alex Garland, ter uma sessão especial, este que é um dos filmes de entretenimento que aborda de forma distópica a clivagem americana atual e imagina uma autêntica guerra civil na América.
Sabe-se também que os novos de Yorgos Lanthimos, Michel Franco ou Brady Corbet estão prontos e talvez só não estejam em Berlim por Cannes ser mais atraente. Rezam também os rumores que Miguel Gomes, com Grand Tour, teria convite para a competição oficial. Tudo aquilo que se especulava para Berlim e que era apetecível deve fazer do próximo Festival de Cannes um grande festival.
O momento Scorsese
Um dos momentos mais significativos da Berlinale será a Urso de Ouro pela carreira a Martin Scorsese. O realizador americano estará presente na Berlinale Palast e terá direito a uma sessão especial de The Departed- Entre Inimigos, o filme que finalmente lhe deu o Óscar. Scorsese
chegará à Berlinale em plena azáfama da campanha para o Óscar de Assassinos da Lua das Flores, o épico feito para Apple + que em Portugal foi um sucesso impressionante de bilheteiras. Um ano depois da homenagem a Spielberg, Berlim presta tributo a outra das lendas do cinema americano.