A balada da revolta de Nan Goldin
Toda a Beleza e a Carnificina, de Laura Poitras, é uma dádiva de Nan Goldin e uma entrada no seu mundo de luta e luto contra a Purdue Pharma, farmacêutica da família Slacker responsável pela epidemia dos opióides. Venceu o Leão de Ouro de Veneza e foi nomeado ao Óscar de melhor documentário.
Oração fúnebre e grito de revolta. Um dois-em-um de Laura Poitras sempre em jogo com duas dimensões que não colidem: a biografia documental da artista Nan Goldin e o processo de ativismo contra a família Slacker, responsáveis pela epidemia dos opióides na indústria dos fármacos americanos. O grande golpe de rins deste novo documentário da realizadora de Citizenfour é abraçar a sua vocação: não ter vergonha de ser uma homenagem a Nan.
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Nan Goldin que é cúmplice de um processo artístico armado perante uma lógica de grande entrevista confessional e armazenado segundo uma lógica de divulgação da sua arte - não deixa de ser metódica e harmoniosa a forma como as suas fotografias são montadas visualmente. Ora em slideshow com vibração dramática, ora de forma mais seca. Obras como The Ballad of Sexual Dependency; The Other Side; Sisters, Saints and Sibyls; e Memory Lost surgem com uma beleza intocável e sempre em sintonia com a mágoa das palavras da artista. E vêmo-la a dizer o que nunca tinha revelado: do processo de vício aos tempos em que foi stripper e trabalhadora sexual num bordel.
Laura Poitras, que assume o gesto de fazer parte da conversa, consegue algo raro em documentário: ir ao sabor épico dos acontecimentos, mostrando a criação do grupo de ativismo de Nan, o P.A.I.N (Prescription Addiction Intervention Now), verdadeiro responsável por acusar os diferentes museus e instituições artísticas que colaboraram com a família Sackler em troca de apoio financeiro. Por isso mesmo, sente-se uma carga de epopeia: uma câmara no meio de acontecimentos em direto, uma espécie de utopia de cinema ativista.
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À parte dessa mistura de retrato de artista e de "filme denúncia", All The Beauty and The Bloodshed vive de uma organização emocional impecável em capítulos que se completam e reforçam um registo de uma classe cultural sempre muito próxima do proletariado e das margens. O tal "snapshot" de uma página da contracultura novaiorquina dos anos 1970/80, incorporando uma tocante atitude "punk rocker". Se há quem possa acusar a santificação de Nan Goldin, uma coisa é certa: a artista retratada é o cúmulo da generosidade e as suas memórias parecem ser sempre em função do elogio dos amigos e cúmplices, neste caso um cemitério de desaparecidos, da sua irmã a "heróis" esquecidos como Cookie Mueller, David Armstrong, Peter Hujar, entre outros. E a mágoa do filme não tem adornos...
Em louvor de Laura Poitras, importante não menosprezar o seu "savoir-faire" de cineasta de investigação, mesmo quando pelo caminho tem de fazer as estafadas entrevistas "talking heads": a sua câmara solta tem mesmo a urgência necessária de mostrar que as dimensões artísticas e militantes são duas faces da mesma moeda.
A questão que fica é se o Leão de Ouro em Veneza não será um prémio da correção. Em função dos outros grandes filmes em competição, importa dar um pouco o braço a torcer, mas não deixa de ser significativo depois disso Berlim ter dado o Urso a um outro documentário, Sur L"Adamant, de Nicolas Phillibert, viagem terna ao mundo daqueles que olhamos como meros "loucos".
