E a alegria que é ver estrear um filme de Kelly Reichardt? Depois de um jejum demasiado longo - o anterior Certain Women (2016) não teve distribuição por cá, e Night Moves já é da colheita de 2014 -, sabe bem reencontrar um dos nomes fundamentais da produção independente americana. Porém, a alegria com que recebemos First Cow não tem nada de festivo: é tão serena quanto o seu plano de abertura, com um cargueiro sobre as águas a atravessar lentamente o ecrã de um lado ao outro. Perante a quietude, rejubilamos um bocadinho. E nesse plano sem aparente significado, que nos situa na contemporaneidade, está contido o fantasma de outro que, mais adiante, no século XIX, apresenta a personagem titular: uma vaca, a primeira do território, a chegar numa barcaça qual mercadoria majestosa, símbolo do futuro a deslizar sobre as águas do mesmo rio. Mas é através da terra, mais especificamente através de dois esqueletos humanos descobertos na floresta, que somos transportados para 1820. Ali, há uma história para contar..Depois de Old Joy (2006), Wendy & Lucy (2008) e O Atalho (2010), Reichardt regressa ao esplendor natural do Oregon para retratar a América primitiva a partir de duas personagens errantes cujos destinos se cruzam na fronteira agreste, onde homens rudes procuram fazer fortuna. Cookie (John Magaro), longe de se identificar com essa rudeza, é o tímido cozinheiro de um grupo de garimpeiros que, numa solitária excursão noturna para procurar bens comestíveis, encontra King-Lu (Orion Lee), um imigrante chinês, sem uma única peça de roupa sobre o corpo, que se diz perseguido por russos... Em qualquer narrativa do velho oeste, a atitude "normal" nesta situação, e neste ambiente, seria desconfiar e partir para o ataque. Mas Reichardt - que adapta um romance do argumentista com quem costuma colaborar, Jonathan Raymond - leva-nos pela estranheza da bondade: Cookie agasalha King-Lu e dá-lhe abrigo para o resto da noite..Os dois voltam a encontrar-se mais tarde, fruto do acaso, no saloon de um entreposto comercial, e a empatia vai-se esboçando num formoso ato de sobrevivência conjunta. Belíssima, pela simplicidade, é a cena em que King-Lu mostra a Cookie a sua cabana improvisada, e este último, em silêncio, começa a varrer o chão e a ornamentá-la com um pequeno ramo de flores silvestres. Em Reichardt não é preciso um extenso contrato verbal para se perceber a evolução das personagens; os gestos dizem da amizade..Mas estamos no Oregon dos caçadores de lucro, e ninguém escapa ao inexorável espírito capitalista. Quando o cozinheiro (que entretanto se separou dos garimpeiros) se mostra encantado com a presença, na vizinhança, da dita vaca de um magnata do comércio britânico, King-Lu acrescenta a visão necessária para se alcançar um negócio naquele lugar, propondo ao companheiro uma parceria criminosa. O plano é ordenhar a vaca à noite e com o leite fazer biscoitos e bolinhos fritos para vender no entreposto. Seguros da arte culinária de Cookie (a alcunha não engana), o ingrediente secreto, e roubado, é a arma do sucesso... O sonho americano surge então sob a forma de uma iguaria, como se diz a certa altura, com "sabor a Londres". Eis que um par de vagabundos trouxe um pouco de delicadeza a uma terra de brutos..Por esta altura, a ideia de que First Cow se prepara para revelar uma relação homoerótica pode-se ter instalado. E embora Reichardt não siga por aí (no prólogo há inclusive um verso de William Blake que limita essa interpretação), a verdade é que não deixamos de ver uma bela história de amor entre os dois homens, na mesma medida em que Howard Hawks disse que "love is clearly the word" para descrever a amizade de Kirk Douglas e Dewey Martin em The Big Sky (1952). O velho oeste está cheio dessas histórias de amor, mas faltava isto: desbastar a masculinidade..YouTubeyoutubeSRUWVT87mt8.Com um argumento de filme de assalto embrulhado na placidez de uma balada de western, First Cow - A Primeira Vaca da América observa a ferida do capitalismo numa paisagem que acalenta a fatalidade. Cookie e King-Lu são aqui os bons "parasitas" merecedores de uma lente calorosa que proteja a sua breve jornada de um embate violento. Por isso, uma cena de perseguição será algo mais magnetizante do que enérgico. Virtude também do trabalho do diretor de fotografia Christopher Blauvelt, que tem vindo a moldar o universo visual da realizadora, neste caso, exponenciando a camuflagem do humano no mundo natural..De resto, Kelly Reichardt conhece bem o poder da paisagem, domina os seus elementos na narrativa e nunca cai na tentação do pitoresco. Não há imagens em falso, tudo se conjuga no fascínio discreto a que nos habituou. Na essência, o seu cinema tem sido um questionamento da identidade americana, com personagens que deambulam e se relacionam com a natureza numa espécie de busca existencial, sem qualquer lirismo martelado. Feito da mesma massa, First Cow ainda apurou a receita. É um filme de infinita gentileza, que labora um conto sobre duas almas solitárias unidas na concreta busca por oportunidades num território nascente..dnot@dn.pt