641 minutos de cinema ou a beleza dos instantes

Através das suas histórias cruzadas, Pathos Ethos Logos leva-nos a redescobrir o movimento das imagens e das palavras, questionando os impasses da nossa muito humana condição.

Os 641 minutos que duram as três partes de Pathos Ethos Logos são um pormenor sem importância. Afinal de contas, vivemos num mundo em que uma qualquer telenovela se prolonga por várias centenas de horas... e não se vê que, quase meio século depois da estreia de Gabriela, o facto suscite grandes inquietações. A explicação é simples: a novela adquiriu um estatuto de "naturalidade" que, supostamente, a isenta de qualquer responsabilidade cultural (mesmo que toda a gente saiba que a cultura de um país se define sempre, para o melhor ou para o pior, através das suas mais poderosas matrizes de ficção).

Pathos Ethos Logos é um objeto minoritário. Não porque se desinteresse pelo seu país (bem pelo contrário). Antes porque a sua visão resiste aos lugares-comuns narrativos que nos dispensam de olhar para os seres e as coisas à nossa volta - este é mesmo um objeto capaz de ligar passado e futuro nesse presente mágico que é, ou pode ser, a experiência de assistir a um filme. Como é recordado na sua terceira parte, podemos até sentir "saudades do que não vivemos" - tempus fugit.

Num magnífico artigo sobre Pathos Ethos Logos (publicado na revista do Mosteiro de Singeverga), D. Abade Bernardino Costa refere, precisamente, a ilusão de velocidade das nossas medidas do tempo: "Porque é que a nossa sociedade telecomunicativa é tão capaz de olhar, mas tão incapaz de esperar?" O que está em jogo é o próprio valor que se atribui à comunicação: "Creio que o risco seja o de considerar o "tele" como uma prótese, mais ou menos tecnológica, do "comunicativo". Se isto acontece, é porque o ato de comunicar em geral é já entendido como prótese do homem e não como encontro para o qual é feito o homem."

Daí que o cinema de Pathos Ethos Logos seja uma arte de infinita revisitação das coordenadas humanas, perguntando-nos o que significa isso de existirmos através das imagens e dos sons, ou melhor, de imagens que apelam às palavras, de palavras que parecem gerar as imagens que vão aparecer. Este é, muito simplesmente, um filme sobre o entendimento do mundo, o reconhecimento da sua violência e da possibilidade do maravilhoso que, apesar de tudo, nele habita - trata-se de reconhecer "o desarranjo do mundo" e, a partir da sua consciência, "despertar para o maravilhoso".

Nas três partes de Pathos Ethos Logos (cada uma será projetada no cinema Ideal em sessões autónomas, com horários diferenciados) encontramos outras tantas personagens femininas: Ângela Cerveira, Rafaela Jacinto e Fabiana Silva interpretam mulheres que têm tanto de material como de divino. Material porque as descobrimos enredadas num destino de muitas tarefas, numa viagem de descoberta estranha a qualquer determinismo. Divino porque tudo isso pressupõe, sugere ou aponta para a possibilidade de uma transcendência que nunca é estranha às vivências do corpo.

Repare-se como na história interpretada por Rafaela Jacinto, através do dia a dia de uma clínica veterinária, somos confrontados com a pluralidade do mundo animal. Mais do que isso: com a verdade que os animais nos expõem e, quando os sabemos acolher, instalam na nossa existência. Verdade enigmática, porventura indecifrável, porque exterior ao movimento das palavras que nos faz ser humanos. Desse modo, instante a instante, o cinema faz-nos pressentir a imensidão da beleza que fomos perdendo - pressentir é voltar a desejar.

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