Tratamo-la sempre pelo nome: Gunda. Uma mãe deitada no feno que, no início do filme, dá à luz os seus leitões. A câmara circunda-a como que a medir as contrações de um animal sagrado, enquanto as crias procuram o leite que lhes dá força para o primeiro fôlego neste mundo. Mas o mundo não é para todos e o russo Viktor Kossakovsky (n. 1961) quis mostrar como ele é sentido numa quinta. Lugar real e imaginário, físico e holístico, onde galinhas e vacas dão o ar de sua graça, mas são os porcos que triunfam pela simplicidade do quotidiano. Gunda, o filme, é um generoso ato de observação que se deixa revestir de um discurso ativo, mas não o transporta para as imagens. Estas são a própria pureza fotográfica, texturas de tempo que fixam uma linguagem de empatia onde não se escuta uma palavra ou música, mas sim os sons da natureza..Ao telefone a partir de Berlim, o realizador que antes assinara Aquarela (2018), documentário sobre a fragilidade humana perante a força da água, refere-se a Gunda como uma obra muito pessoal. Emociona-se ao longo da conversa, e regozija-se quando nota que, como ele, fomos abalados pelo olhar triste de Gunda para a câmara no momento em que lhe são tiradas as suas crianças..YouTubeyoutubef9It4V5Gxpo.O seu primeiro filme, Belovy [1992], passava-se numa quinta, embora não com enfoque exclusivo nos animais. Será que Gunda é a continuação de uma "conversa" com esse lugar, que é também um lugar do seu passado? É uma boa maneira de o dizer. Eu cresci em São Petersburgo, mas durante a minha infância passei alguns meses na aldeia onde rodei Belovy. Tinha quatro anos, era um inverno muito frio e havia lá um pequeno leitão que, por causa das temperaturas negativas, tinha sido levado para dentro de casa. Esse leitão tornou-se o meu melhor amigo - na verdade, as memórias mais felizes da minha infância são com ele, passámos muitos bons momentos juntos, divertíamo-nos a fazer traquinices e eu sabia que ele era um ser inteligente, que tinha personalidade. Mas chegou o dia em que os meus familiares decidiram matá-lo... Para mim foi um desastre; tornei-me vegetariano naquele exato momento. E sempre pensei que havia de fazer este filme [Gunda]. Andava a tentar desde 1997. Mas como explicar a alguém que se quer fazer um filme sobre porcos, galinhas e vacas? Demorei este tempo todo até conseguir financiamento. E o mais curioso é que o final de Belovy e o final de Gunda, na realidade, são o mesmo! Quando Gunda começa a andar em círculos e finalmente entra no seu celeiro, nesse instante eu comecei a chorar com a minha equipa, porque os olhos dela interpelam-nos: "O que é que vocês estão a fazer?" Isto tornou-se duplamente mágico para mim porque, como dizia, no final de Belovy a personagem principal, Anna, também dança em círculos e a certa altura sai e fecha a porta. Estes dois filmes estão de facto ligados, e de uma forma inesperada..No final de Gunda regressei à memória de Um Porquinho Chamado Babe, que não tem nada que ver em termos de abordagem cinematográfica, mas que me marcou na infância, tendo feito muita gente vegetariana, a começar pelo ator James Cromwell. O seu filme encontra-se com esse desígnio? Absolutamente! Por acaso sempre fui cético em relação à ideia de o cinema ter o poder de mudar alguma coisa. Mas o que estou a experienciar agora é diferente: todas as semanas recebo dezenas de cartas de todo o mundo, sobretudo de jovens que me dizem que Gunda mudou as suas vidas, que já não conseguem comer carne, e mesmo adolescentes que se questionam porque é que ninguém lhes falou sobre esta realidade antes..A câmara é aqui uma presença tão sensível quanto notória - ao olhar diretamente para ela, Gunda está a olhar para nós. Como é que, in loco, geriu a distância entre a lente e os animais? Sim, essa é uma questão muito importante. Desde logo, não queria forçar emoções no espectador com zooms, comentário voice-over ou música. Nesse momento expressivo de Gunda, é ela que se dirige a mim [à câmara], não o contrário. E isso acontece naturalmente porque passámos tempo com ela, ficámos amigos. Cheguei mesmo a conceber um celeiro igual àquele onde ela costuma estar, de maneira a colocar a lente da câmara dentro da casota, sem a perturbar. Todos os dias, antes de ela acordar, já estávamos ali, e só a deixávamos à hora em que fosse dormir. Por isso, quando as crias nasceram, a nossa presença não causou estranheza - estivemos sempre ali. Já com as galinhas... não as podemos filmar de tão perto, porque elas fogem. O mesmo com o touro e as vacas. Mas se o conseguimos é porque, em vez de quintas normais, filmámos galinhas e vacas em santuários de animais, e aí eles sentem-se seguros. Claro que fizemos alguns aperfeiçoamentos técnicos [com o diretor de fotografia Egil Håskjold Larsen], usando uma Steadicam normal, de maneira a ficarmos muito próximos, sem os incomodar. Acima de tudo, o fundamental foi, e é, mantermo-nos ao nível dos olhos dos animais, respeitar o ponto de vista deles..O preto e branco também joga com a proximidade, dignifica a beleza destes animais. Mas deduzo que a sua escolha tenha uma razão de ser para além do valor estético... Tentando explicar-me de forma breve, há dois aspetos. Antes de mais, inconscientemente, as pessoas têm a ideia da imagem a preto e branco como um documento, algo que tem uma vibração perene - e eu penso, e espero, que Gunda tenha esse sentido de longevidade junto dos espectadores. Depois, aconteceu de facto uma coisa misteriosa. Quando experimentei a imagem a cores, os leitões pareciam simplesmente adoráveis, fofinhos, mas quando mudei para o preto e branco, o que saltou logo à vista foi a expressão dos seus olhos, a sua personalidade. É a isto que chamo magia! Foi difícil convencer os produtores de que este filme tinha de ser a preto e branco, por causa dos receios de limitar o público... Mas quando lhes provei esta diferença, ficou claro. O que me interessa é que o cinema "mostre", em vez de contar uma história. Afinal, foi assim no princípio do cinema..Por falar em mostrar, no filme, o rosto humano foi completamente arredado da paisagem. É um statement? Nós tendemos a comparar-nos aos animais, e achamo-nos superiores, com direito a explorá-los. Hoje em dia matamos mil milhões de porcos por ano, que só chegam aos oito meses de vida... Na verdade, inventámos o que há de pior: a tortura, os campos de concentração, as armas, as bombas nucleares. Estamos num ato contínuo de matança, mas não se pensa nem se fala muito nisto. O que quero dizer é que sem empatia não podemos avançar e evoluir..E Joaquin Phoenix? Como é que o seu nome veio parar aos créditos, como produtor? Quando recebeu o Óscar de melhor ator por Joker, ele fez um discurso... não sei se assistiu....Sim, um discurso que passou por essa ideia da nossa pretensa superioridade sobre as outras espécies. Exato. Por causa disso, o meu telefone não parava de tocar, com pessoas da minha equipa e amigos americanos a ligarem-me para perguntar se tinha sido eu a escrever o discurso do Joaquin Phoenix! Disse que não, mas toda a gente ficou espantada por ele estar a dizer o que digo o tempo todo... E quando fui ouvir, era realmente a sintonia perfeita. Enviei-lhe o filme e ele ligou-me pouco tempo depois dizendo que lhe agradava muito a escolha de se mostrar os animais tal como eles são..dnot@dn.pt