Manifestação ucraniana  em Kiev, na Praça  da Independência.
Manifestação ucraniana em Kiev, na Praça da Independência.

“É impossível compreender a motivação dos ucranianos que hoje resistem à Rússia sem compreender o passado”

Repórter de guerra do Wall Street Journal, Yaroslav Trofimov publicou agora Um País Sem Amor, um romance inspirado na vida da sua avó judia ucraniana.
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A primeira metade do século XX foi terrível para os ucranianos. Foi ainda mais terrível para os judeus ucranianos, como a família de Debora, que é a sua família?

A Ucrânia esteve entre os lugares mais mortíferos da Terra - possivelmente até o mais mortífero - durante o século XX. Pelo menos quatro milhões de ucranianos morreram na fome do Holodomor na década de 1930, centenas de milhares na repressão estalinista que eliminou a elite cultural da Ucrânia e, em seguida, quase 10 milhões durante a Segunda Guerra Mundial. São perdas gigantescas, considerando que toda a Ucrânia soviética tinha uma população de 29 milhões de pessoas, de acordo com o censo de 1926. Todos os ucranianos sofreram no Holodomor e na repressão, mas, obviamente, os judeus ucranianos foram o alvo direto do extermínio nazi no Holocausto. De facto, um dos primeiros grandes atos do Holocausto foi o massacre de Babyn Yar, em Kiev, em 1941. A razão pela qual grande parte dos judeus ucranianos sobreviveu à guerra - incluindo Debora e incluindo a família do presidente Zelensky - é que as mulheres e as crianças conseguiram fugir para Leste, para as zonas não-ocupadas da URSS, enquanto os homens combatiam no Exército Vermelho.

Estes tempos terríveis na Ucrânia pós-Revolução Bolchevique e também durante a Segunda Guerra Mundial, ocorreram igualmente na Rússia e noutras repúblicas soviéticas?

Embora partes da Rússia também tenham sido devastadas, como celebremente Estalinegrado, o peso da guerra foi sentido sobretudo pela Ucrânia e pela Bielorrússia - que foram completamente ocupadas pelos nazis e serviram como principais campos de batalha. Afinal, metade da população de Kiev foi morta entre 1941 e 1943. Cidades como Kharkiv mudaram de mãos várias vezes. Quanto ao Holodomor, também houve períodos de fome na época no Cazaquistão e nas zonas cossacas do sul da Rússia, que tinham uma grande população étnica ucraniana. Em todas estas áreas, Moscovo tinha um plano político - e genocida - para destruir a população rural potencialmente rebelde.

O jornalista ucraniano Yaroslav Trofimov.
O jornalista ucraniano Yaroslav Trofimov.

A construção da nacionalidade ucraniana colide frequentemente com a força (e influência) da cultura russa entre os próprios ucranianos?

Esta é sempre uma questão nos países que emergem do colonialismo - o senhor colonial deixa uma marca, e a Rússia foi um senhor colonial particularmente brutal. A língua ucraniana foi praticamente proibida durante a maior parte do século XIX, e a cultura e a literatura escritas ucranianas sobreviveram em grande parte graças ao facto de um canto do oeste da Ucrânia, incluindo a grande cidade de Lviv/ Lemberg, se encontrar na Áustria, onde os Habsburgos permitiam a impressão de livros ucranianos e o ensino universitário em ucraniano. A mensagem de Moscovo em épocas posteriores era que a cultura ucraniana se destina ao folclore e aos contos de aldeia, e que nada de moderno ou sofisticado pode ser expresso pelos ucranianos. Essa mentalidade mudou, obviamente, agora.

No livro, fala da parte ocidental da Ucrânia, que foi austro- -húngara e depois polaca, como sendo particularmente avessa ao regime soviético. Ainda é uma parte da Ucrânia que se destaca hoje?

Sim e não. Partes ocidentais da Ucrânia, particularmente a antiga Galícia austríaca, têm sido referidas como o Piemonte ucraniano, uma região que desempenhou um papel descomunal no movimento independentista. Mas a guerra atual mudou as coisas. A grande maioria da morte e destruição nos últimos três anos e meio ocorreu nas áreas predominantemente de língua russa do leste da Ucrânia, e é aí que o ódio pela Rússia é mais profundo. Não é de estranhar, dado que milhões de pessoas perderam as suas casas, amigos ou familiares.

O livro faz referência também a Stefan Bandera, visto como um herói nacional por uns e como um aliado dos alemães por outros. Como vê esta figura controversa?

Bandera é claramente uma figura controversa e, embora tenha colaborado com os nazis em alguns momentos, também é verdade que passou a maior parte da Segunda Guerra Mundial num campo de concentração alemão, porque os nazis não tinham qualquer interesse numa Ucrânia independente e planeavam, a longo prazo, o extermínio dos ucranianos. As pessoas na Ucrânia gostam de dizer, corretamente, que os ucranianos fazem parte do Mundo Ocidental e partilham valores ocidentais. Infelizmente, os valores ocidentais dominantes em 1941 eram de nacionalismo fascista, fosse o de Hitler, o de Mussolini, ou o de Pétain - fosse o de Bandera. A razão pela qual Bandera é visto por alguns ucranianos como um herói não é pelo que fez na Segunda Guerra Mundial, mas pelo que os seus seguidores fizeram depois da guerra, na insurgência anti-soviética que durou quase uma década.

O seu romance passa-se essencialmente entre as décadas de 1930 e 1950. Acha que o que conta ajuda a explicar como é a Ucrânia hoje e como resiste à Rússia?

Com certeza. É impossível compreender a motivação dos ucranianos que hoje resistem à Rússia sem compreender este passado. Praticamente todas as famílias ucranianas descendem de avós ou bisavós que sobreviveram àquele picador de carne da História. Esse passado está-nos nos ossos, e é um passado que a Rússia quer trazer de volta. Não é por acaso que a primeira coisa que os soldados russos fazem quando ocupam uma cidade ou vila ucraniana é destruir o monumento às vítimas da fome do Holodomor. Os ucranianos sabem, pela sua História, que, por mais sangrenta e custosa que seja a resistência à Rússia, a rendição traria muito mais mortes e muito mais destruição.

Um país sem amor

Yaroslav Trofimov

Alma dos Livros 328 páginas

19,45 euros

É possível que a Ucrânia saia vitoriosa contra um invasor tão poderoso como a Rússia?

Bem, as tropas russas deveriam estar em Kiev em março de 2022 e não estão, pois não? Acho que tudo depende da forma como se define vitória. A sobrevivência da Ucrânia como um país totalmente independente que ainda controla 80% do território enquanto luta sozinho contra uma superpotência nuclear - isso já é uma grande vitória. Não conheço muitos países que teriam sido capazes de enfrentar a Rússia numa guerra em grande escala e não serem derrotados em semanas.

Acredita que um dia haverá reconciliação entre ucranianos e russos?

A Rússia deve reconhecer o que fez, pedir desculpa e pagar primeiro as reparações de guerra. Houve reconciliação entre a Alemanha e os seus vizinhos. Mas antes da reconciliação, deve haver arrependimento.

Volodymyr Zelensky é judeu e presidente da Ucrânia, mas Vladimir Putin insiste em desnazificar a Ucrânia. Qual é a situação real dos judeus na Ucrânia hoje?

É certamente mais seguro para um judeu religioso andar pelas ruas de Kiev do que em muitas cidades da Europa Ocidental hoje em dia, e mesmo apesar da guerra, dezenas de milhares de peregrinos judeus de todo o mundo visitam a cidade de Uman todos os anos. A Ucrânia é uma sociedade multiétnica e multicultural - o conselheiro de Segurança Nacional de Zelensky e, até recentemente, ministro da Defesa, Rustem Umerov, é muçulmano, e o chefe das Forças Armadas, general Syrsky, é um russo étnico nascido na Rússia. Para a Rússia, todo o ucraniano que não quer ser russo é um nazi. Essa é praticamente a definição deles.

Como jornalista, já assistiu a muitas guerras. O que esta, no seu país, tem de mais singular?

Bem, obviamente é muito mais difícil escrever sobre a sua própria cidade natal ser bombardeada. Mas penso que, de certa forma, esta é a guerra mais fácil de cobrir, porque tem uma clareza moral que poucos conflitos, se é que houve algum, tiveram desde a Segunda Guerra Mundial. A Rússia lançou uma agressão colonialista não-provocada contra um país que apenas queria ser deixado em paz e que se tem defendido bravamente todos estes anos, mantendo a pureza da luta. É notável o cuidado com que a Ucrânia tenta evitar baixas civis com os seus ataques a fábricas militares ou refinarias de petróleo russas - mesmo depois de a Rússia ter bombardeado repetidamente zonas residenciais ucranianas.

O seu livro deve ser lido como um romance ou tem uma mensagem política?

É um romance sobre uma jovem cujas esperanças e aspirações são frustradas pelo encontro com as forças da História e que aprende a sobreviver e a manipular circunstâncias impossíveis. A sua mensagem central é a análise do custo da sobrevivência - até que ponto estamos dispostos a ir para nos protegermos a nós próprios e àqueles que amamos? Não se trata apenas da Ucrânia - as pessoas, em muitas outras circunstâncias, têm de lidar com desafios semelhantes. Na verdade, o livro foi escrito para pessoas que podem não ter qualquer interesse na Ucrânia como tal. Mas, obviamente, conta também a História da Ucrânia, que era uma verdadeira terra incógnita para muitos europeus antes de 2022, através da vida de Debora.

Debora é real e extraordinária, uma sobrevivente, não é?

Muito mesmo - a minha avó biológica, em quem a personagem Debora se inspira, também se chamava Debora, e muitas partes da história são baseadas na sua vida. E ela sobreviveu - aliás, viveu até aos 93 anos!

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