Poderão as plantas ser sencientes? Dotadas de memória, que aprendam, comuniquem e até tomem decisões? Sem cérebro, sem sistema nervoso, mas com formas de vida e de respostas ao meio que escapam à lógica humana. Interrogações que motivam o trabalho do filósofo da ciência espanhol Paco Calvo. O investigador na Universidade de Múrcia, esteve em Lisboa, no âmbito do ciclo Human Entities 2025: a cultura na era da inteligência artificial, promovido pela associação cultural CADA, um encontro onde se cruzaram arte, ciência e tecnologia. Momento, também, para uma reflexão assente no livro de Paco Calvo, Planta Sapiens (edição Presença), obra que propõe uma mudança de perspetiva: olhar para as plantas não como pano de fundo do mundo vivo, mas como agentes ativos, dotados de uma inteligência própria. Matéria para a presente entrevista.No prefácio ao seu livro, escreve que a sua aventura nesta investigação começou em 2006, após a leitura de um livro dedicado aos aspetos neuronais da vida das plantas. Julgo que temos aqui matéria-prima para uma pergunta com exclamação: as plantas têm neurónios?A resposta é simples: não, as plantas não têm neurónios. Mas isso obriga-nos a colocar uma pergunta ainda mais interessante: porque é que achamos que os neurónios são essenciais para haver inteligência? Porque acreditamos que só um tecido neuronal pode dar origem a uma mente ou a um comportamento inteligente? O erro, para mim, está numa visão profundamente neurocêntrica, ou num neurochauvinismo. Se aceitarmos que as plantas não têm neurónios, mas que demonstram capacidades cognitivas, isso significa que é possível processar informação, comunicar, responder ao ambiente, sem essa estrutura. As plantas fazem isso através de canais bioelétricos. Tal como nós. Só que sem neurónios. O importante é o comportamento, não o substrato anatómico.Ou seja, a sua afirmação é uma provocação.Sim, é uma provocação. Mas não é gratuita. É pedagógica. Serve para nos obrigar a pensar: o que é a inteligência, afinal? Como se manifesta? E se as plantas conseguem fazer o que fazem sem neurónios, então, que papel têm os neurónios nos animais? E nos humanos? A inteligência reduz-se à atividade neuronal? Essa é uma visão profundamente reducionista.Ao ler o livro que refere deu-se em mim como que uma fissura numa parede. Através dela, entrou uma nova luz. Comecei a pensar que a inteligência podia ser uma propriedade generalizada da vida. Não uniformemente distribuída, claro. Mas talvez todos os seres vivos tenham, em graus e formas diferentes, a capacidade de se adaptar, de aprender, de responder.O naturalista Charles Darwin é convocado inúmeras vezes para o seu livro. Descreve o “caminho do pensamento” daquele homem — o movimento do corpo pelo espaço como forma de avançar na mente. No seu caso, como se desenrolou este caminho? No fundo, que perguntas começou por fazer para compreender a inteligência das plantas?É muito importante, quando falamos sobre o caminho do pensamento de Darwin, entender que é um bom ponto de partida, porque a inteligência e o pensamento se desenvolvem através de um corpo. Não flutuam aquém destes. Não são um ente abstrato. Ou seja, requerem interação. Um sujeito que pensa é um sujeito que se comporta, que interage com o seu ambiente.No meu caso particular, o caminho que tive de percorrer foi – e este foi um esforço intelectual que levei muito a sério – tentar esquecer-me de mim mesmo. Para compreender o Homo sapiens, temos de esquecer o que significa Homo sapiens. Porque acreditamos que sabemos o que é ser Homo sapiens. Mas justamente porque esta ideia está tão enraizada, não percebemos a quantidade de preconceitos implícitos, de falhas que existem nessa definição.Então, o meu caminho começou por não procurar compreender a inteligência nos humanos, ou mesmo em animais que nos são próximos, como os primatas, mas, muito pelo contrário, buscando a inteligência em formas de vida distantes da nossa concretude, das nossas preconceções. Se um qualquer organismo, incluindo seres unicelulares e bactérias, não fosse inteligente, não estaria aqui. Já teria sido extinto. Ou seja, o facto de estarem aqui significa que devem estar a fazer algo muito bem.Desta forma, para mim, o caminho foi este: oferecer-nos um banho de humildade. Livrar-nos dessa visão arrogante que temos como espécie. E perceber que não somos mais do que outra forma, outra estratégia que a evolução encontrou para existir.E o que encontrou nesse caminho?Humildade. Perceber que a nossa espécie não é o cume da evolução. Somos uma entre muitas formas que a vida encontrou para persistir. Mesmo as bactérias, se lá estão há milhões de anos, é porque são eficientes. Não é isso uma forma de inteligência?E como é que se liberta dessa condição humana? No fundo, é-nos intrínseca. Com filosofia. Mas não no sentido académico. Não se trata de decorar teorias. Trata-se de filosofar. De desconfiar daquilo que nos parece óbvio. De olhar com outros olhos. E de aceitar que esse é um trabalho para toda a vida. Nunca está concluído. Até porque, de vez em quando, lá estamos de novo a colocar o Homo sapiens no centro do universo.Em momentos anteriores, referiu-se à “síndrome de Omphalos” e associou-a à nossa incapacidade de compreender outros mundos, como o vegetal. Face ao que disse atrás presumo que se refira ao facto de sermos uma espécie inclinada ao antropocentrismo…É a nossa incapacidade de ver o que não se parece connosco. Somos antropocêntricos, neurocêntricos, zoocêntricos, locomocêntricos. Achamos que o movimento é essencial. Uma planta não se move, mas cresce. Alcança objetivos pelo crescimento. Neste contexto, o de aceitar novos conceitos, os jovens são muito mais recetivos. Basta explicar-lhes e percebem com naturalidade. São como plantas: se regarmos bem, crescem. O problema é o sistema educativo. Falta especulação, criatividade, revoluções Copernianas. Vivemos numa “fazenda de engorda de hipocampos”, ou seja, decoração e repetição. O hipocampo é a parte do cérebro onde se armazena a memória de longo prazo. Uso esta imagem para criticar o sistema educativo atual, que funciona exatamente como uma fazenda de engorda: só se preocupa em alimentar o hipocampo. Porque o sistema educativo é essencialmente memorístico. Dedicamo-nos apenas a repetir, repetir, memorizar e repetir. E com isso, esquecemos algo fundamental: a importância da imaginação, da especulação, de pensar diferente. Não nos ocorre fazer a pergunta mais importante de todas às crianças na sala de aula: “O que pensas tu?”. Isso é mais importante do que saber se és capaz de reproduzir o que outra pessoa pensou.Ao nos referirmos à “comunicação” ou à “inteligência” associamo-las de imediato a seres com cérebro e sistema nervoso. Como explica, a uma pessoa sem formação científica, que, tal como defende, as plantas conseguem “tomar decisões” ou “lembrar-se” de situações de ameaça, mesmo sem possuírem sistema nervoso?Primeiro, temos de abandonar a ideia de que a inteligência está “dentro da cabeça”. Ela está no comportamento. Quando observamos um comportamento suficientemente sofisticado, dizemos que ali há inteligência. Por isso, na minha investigação, recorro ao timelapse para observar o que, à nossa escala temporal, não é visível. As plantas estão sempre em movimento, mas nós somos demasiado impacientes para o notar.Não estaremos a falar de uma adaptação evolutiva?Dou-lhe um exemplo: algumas flores reconhecem a vibração de um polinizador específico. E só quando ele se aproxima aumentam a produção de néctar. Outras mimetizam a forma do polinizador. Mas não se trata apenas de adaptação evolutiva. O que me interessa é a flexibilidade. Um comportamento inteligente é aquele que muda quando o contexto muda. É antecipatório. Testamos se as plantas conseguem associar estímulos: por exemplo, se um som indica que vem luz. Se a planta aprende essa associação, está a antecipar o que ainda não aconteceu.O que conseguimos provar quando adormecemos uma planta, tal como fez há uns anos na ilha Maurícia? Sabemos que muitas plantas seguem ciclos diurnos e noturnos — dobram folhas, fecham flores, produzem substâncias específicas. Para si, até que ponto esse “repouso” noturno pode ser chamado de “sono vegetal” ou trata-se apenas de uma forma de economia de energia?Não é uma metáfora. As plantas produzem melatonina, tal como nós. E estão sincronizadas com os ciclos do planeta. Fecham as folhas antes do sol se pôr, abrem-nas antes de nascer. Têm relógios circadianos. Estamos a estudar se sofrem de jet lag e se a melatonina as ajuda a recuperar. Se fossem animais, ninguém duvidaria que “dormem”. Para que serve dormir, biologicamente falando? Dormir significa, por exemplo, reparar o ADN. Todas as formas de vida precisam de descansar. Se vivêssemos ao máximo cada segundo dos nossos dias, ‘explodiríamos’. Então, é preciso descansar. Esses picos e vales, ou seja, momentos de atividade e de pausa, são necessários, tanto do ponto de vista metabólico quanto fisiológico.Estamos, neste momento, envolvidos num projeto, financiado pelos Estados Unidos, que investiga exatamente isso, mas nas plantas. O que estamos a estudar é o jet lag vegetal. Ou seja: será que uma planta pode sofrer jet lag, como um animal que atravessa o oceano de avião? Mais: será que a melatonina pode servir para reduzir esse jet lag, como acontece connosco quando tomamos um comprimido de melatonina?Repare, há pouco falávamos da nossa arrogância como espécie. E somos mesmo uma espécie arrogante. As plantas biossintetizam melatonina. Elas próprias produzem melatonina. E, ainda assim, não nos ocorre pensar que, se as plantas produzem melatonina, isso talvez tenha desempenhado um papel na sua existência.Há pouco referiu a utilização de timelapse no seu laboratório. Quer dar-nos um exemplo de como estão a usar esta ferramenta?Sim, usamos timelapse e análise cinemática. Fazemo-lo, por exemplo, com plantas trepadeiras: colocamos um suporte e observamos se o alcançam por acaso ou com controlo. Vemos padrões de aceleração, trajetórias. Tal como faríamos com um rato a caminho do queijo. A diferença é o tempo. São muito mais lentas. E estamos cada vez mais impacientes. Em vez de falar de Homo sapiens, falo de Homo impacientius. Quanto mais acelerados vamos, menos vemos. Darwin, há 150 anos, via mais do que nós conseguimos ver no presente.Em 2022, ao lançar no seu país o livro Planta Sapiens, mostrou-se apreensivo com possíveis críticas, ou até cancelamentos, por parte de colegas. Três anos depois, quais foram os ecos positivos e negativos? Sentiu, de facto, resistência ou houve uma maior compreensão do seu trabalho?Sim. Recebemos ataques de colegas que pediram o fim do financiamento e da publicação dos nossos trabalhos. Mas isso é anticientífico. A ciência não avança por acumulação, mas por revoluções. Precisamos de choques de vez em quando. É assim que se progride.O seu livro foi até ao momento publicado em inúmeros países. A receção foi diferente dependendo do contexto cultural que recebeu a obra?Menos do que esperava. Mesmo culturas que julgamos mais abertas, como a indiana, têm os mesmos preconceitos. Estive com o Dalai Lama e este referiu que as plantas não podiam ser sensíveis porque não se movem. O problema é humano, não apenas ocidental.Ao reconhecermos inteligência às plantas isso obriga-nos a mudar?Sim. Porque se as vermos apenas como recursos, podemos explorá-las. Mas são seres vivos, com valor intrínseco. Mesmo no ecologismo, o discurso está errado: queremos salvá-las porque precisamos delas. Não. Devemos respeitá-las mesmo que não precisássemos. Porque são sujeitos, não objetos.Há quem tema que este tipo de estudos alimente uma visão animista, quase religiosa, de adoração das plantas. Como distingue o rigor científico das plantas enquanto seres altamente adaptáveis da ideia de que devemos “adorar” a Natureza? Onde termina a ciência e começa a metáfora poética?Sim, esse é o risco. Mas temos de distinguir. Quando se diz que as plantas preferem Mozart, isso é antropocentrismo disfarçado, porque estamos a transpor para o mundo vegetal as perceções e gostos que temos pela música. Temos de pensar as plantas por elas e para elas. Imaginem o planeta Terra antes de existirem humanos. Imaginem agora uma civilização extraterrestre que estudasse as plantas sem nos ter a nós como padrão? Esse é o desafio: fazer ciência sem o nosso umbigo ao centro. .“Manter o corpo do último Habsburgo na Igreja do Monte foi decisão da imperatriz Zita e do bispo do Funchal”