A ambição espacial da Europa. Entre grandes desafios e oportunidades, Portugal tem papel estratégico
Especialistas e líderes do setor espacial e de defesa debateram, esta segunda-feira (2), o futuro da Europa no domínio espacial. O "Space Defence Tech Meet Up" realizou-se no Centro de Inovação do Técnico e teve foco particular nos desafios e oportunidades para a Europa neste setor, bem como o papel estratégico de Portugal.
O evento foi organizado pela Critical Software em parceria com a SAAB e o Instituto Superior Técnico (IST), e reuniu figuras como o astronauta da Agência Espacial Europeia (ESA) Christer Fuglesang, a professora do IST Joana Mendonça, e o coronel da Força Aérea Portuguesa Pedro Costa, que revelaram um panorama complexo, mas com enorme potencial e urgência.
A presença de Christer Fuglesang, pioneiro sueco no espaço, trouxe ao evento uma perspetiva única e uma dimensão profunda à discussão. Físico de formação, com um doutoramento em Física de Partículas pela Universidade de Estocolmo e experiência no CERN, Fuglesang fez história ao tornar-se o primeiro cidadão sueco a viajar para o espaço, a bordo da Missão STS-116 do vaivém espacial da NASA, em 10 de dezembro de 2006. Membro do Corpo de Astronautas da ESA desde 1992, acumulou mais de 31 horas em caminhadas espaciais e quase 27 dias em órbita ao longo de duas missões.
No espaço, em órbita, disse o astronauta à plateia maioritariamente composta por estudantes do IST, "a vista é absolutamente incrível. É ver como a Terra é pequena, ver aquela pequena bola azul," partilhou Fuglesang. Uma visão que transcende geopolíticas, levanta uma questão fundamental: "E vês esta bela Terra, não há fronteiras e essas coisas, e dizes: 'Por que é que não podemos trabalhar tão bem juntos lá em baixo para resolver os problemas que temos?'"
Esta reflexão serviu de mote para um debate sobre a necessidade de cooperação europeia e de mais ambição num setor cada vez mais estratégico.
Europa: um gigante adormecido no espaço?
A discussão acabou por sublinhar uma preocupação: a Europa está a ficar para trás nas suas ambições espaciais, uma realidade que se manifesta em vários níveis. Joana Mendonça, professora do Instituto Superior Técnico e ex-presidente da Agência Nacional de Inovação (ANI), não poupou nas palavras ao traçar um cenário de desvantagem: "Se olharmos para os últimos, não sei, pelo menos 20 ou 40 anos, a Europa investiu muito menos no espaço do que os EUA, ou vai até ser ultrapassada pela China nos próximos anos."
E apresentou dados concretos, revelando que, em 2023, o investimento europeu foi de 15 mil milhões de dólares (13,8 mil milhões de euros), comparado com uns impressionantes $73 mil milhões (67,16MM€) dos EUA. A projeção é de que a China deverá atingir os $20 mil milhões (18,4MM€) até 2030, ultrapassando a Europa.
"Temos de correr um pouco mais rápido, se quisermos ir à Lua, como o Christer," gracejou a cocoordenadora do programa de Mestrado em Inovação e Empreendedorismo no Técnico, sublinhando a natureza cumulativa do conhecimento e do investimento neste setor. Ou seja, tudo o que aprendemos hoje é valioso para o que viremos a saber amanhã. De outra forma, teremos de começar de novo.
Diogo Amorim, diretor de Desenvolvimento de Negócio da Critical Software, reforçou esta visão crítica, apontando para a gritante falta de foguetões lançadores reutilizáveis na Europa, como os Falcon da SpaceX, um elemento-chave para a eficiência e competitividade no acesso ao espaço. Além disso, contrastou o "punhado de lançamentos" europeus com os cerca de 140 lançamentos realizados pelos EUA e os 70 da China no ano passado.
Também Christer Fuglesang, que hoje em dia é catalisador de Inovação da SAAB, criticou abertamente a abordagem cautelosa e avessa ao risco. "Quando [o foguetão] Ariane 6 estava a ser desenvolvido, [pela ESA], a SpaceX estava a começar a desenvolver a reutilização do primeiro estágio. E algumas pessoas disseram: 'É isso que devíamos fazer com o Ariane 6'. Mas os velhos que 'sabiam tudo' disseram: 'Não! Isso nunca funcionará.' Agora temos o Ariane 6, um foguetão muito bom, mas muito caro", relatou.
Esta mentalidade, que prioriza a certeza em detrimento da inovação arriscada, resulta em custos elevados para o contribuinte e menor competitividade, sublinhou.
A cultura de "pedir perdão, não permissão" nos EUA versus a abordagem mais regulamentada e burocrática na Europa foi destacada como um fator impeditivo da inovação. Para o coronel Pedro Costa, da Força Aérea Portuguesa, tal pode ser, pelo menos, minimizado com uma maior cooperação europeia. Segundo ele, há uma grande "dispersão de dinheiro" em "muitos pequenos projetos", que impede o desenvolvimento de um lançador europeu robusto e competitivo. A solução, na sua perspetiva, é clara: "Aumentar a cooperação e agir. Agir e não apenas manter os projetos no papel," concentrando esforços em projetos estratégicos que possam realmente alavancar a posição da Europa.
Portugal como ponto estratégico no mapa espacial
Apesar dos desafios que a Europa enfrenta coletivamente, o papel de Portugal no ecossistema de defesa espacial foi consistentemente enaltecido, posicionando o país como um ator com potencial significativo.
Pedro Costa sublinhou a vantagem intrínseca da localização do país: "Temos uma posição geoestratégica muito boa para aceder ao espaço, mas também para observar o espaço a partir da Terra, por exemplo, para a segurança e sustentabilidade do domínio espacial." Um privilégio que não só facilita o acesso a janelas de lançamento favoráveis, mas também permite capacidades cruciais de monitorização e vigilância espacial, essenciais para a segurança e a gestão do tráfego espacial.
O coronel da Força Aérea destacou ainda a abordagem de dupla utilização de Portugal, onde o espaço serve tanto propósitos civis como militares. Esta flexibilidade é vital, permitindo que investimentos em infraestruturas e tecnologias espaciais beneficiem múltiplos setores. A dependência das Forças Armadas de comunicações via satélite, imagens espaciais para conhecimento situacional e sistemas de posicionamento e tempo (GPS) é um motor para o desenvolvimento de capacidades que, por sua vez, têm aplicações civis vastas, desde a agricultura de precisão à gestão de desastres naturais.
Do lado tecnológico, Diogo Amorim reforçou a capacidade de engenharia portuguesa, citando inevitavelmente a Critical Software, como um exemplo proeminente no desenvolvimento de software para satélites. Também a formação de engenheiros no Instituto Superior Técnico foi apontada como a base para esta capacidade: "Temos a capacidade de fornecer este software a quaisquer atores que queiram colocar satélites no espaço", disse.
Foi ainda referido o futuro porto espacial nos Açores, que irá poder receber o SpaceRider, veículo de reentrada europeu — um fator de peso, simbolizando o potencial de Portugal para se tornar um hub no acesso ao espaço. "Podemos não ter capacidade de construção, capacidade de lançamento ainda, mas temos capacidade para apoiar as outras partes deste grande puzzle que é explorar o espaço e desenvolver capacidades," afirmou Amorim, destacando o papel de Portugal na cadeia de valor espacial global.
O futuro: a próxima geração e construir a paz
Apesar da análise sóbria dos desafios, um tom de otimismo prevaleceu sobre o potencial do espaço para o progresso humano e a manutenção da paz. Christer Fuglesang defendeu veementemente que o investimento em defesa espacial pode ter benefícios civis significativos, indo além da mera aplicação militar. "Se o dinheiro for para a defesa espacial, beneficiará também o lado civil," lembrou, citando exemplos práticos como a melhoria da agricultura através da monitorização por satélite, que permite otimizar a fertilização e a irrigação, reduzindo o desperdício.
Esta ideia de que a interligação entre o militar e o civil é um catalisador para a inovação foi ecoada por Diogo Amorim, lembrando que tecnologias como o GPS, hoje de uso comum e essencial para a vida diária, tiveram origem militar. O especialista em software e engenharia aeroespacial mencionou ainda que a exploração do espaço já levou a avanços tão diversos como a fórmula para bebés, desenvolvida a partir de pesquisas da NASA sobre nutrição de astronautas. "Este investimento crescente na defesa espacial trará definitivamente avanços tecnológicos que melhorarão a vida humana e a civilização," concluiu, com a ressalva de que se espera que não seja impulsionado por uma nova "Guerra Fria."
Já a visão de Joana Mendonça sobre o futuro foi profundamente inspiradora, focada na capacidade do espaço para nos reconectar com a nossa responsabilidade planetária. Regressando à metáfora do "ponto azul," ela expressou a sua esperança: "Penso que, às vezes, por estarmos aqui, na Terra, esquecemo-nos de que temos de cuidar dos 'pontos azuis' para a próxima geração", disse. O espaço, concluiu, tem o potencial de fomentar uma consciência global sobre a fragilidade e a beleza do nosso planeta, impulsionando a sua preservação.
A visão sueca: diplomacia e estratégia
A embaixadora da Suécia em Portugal, Elisabeth Eklund, abriu o evento com uma intervenção que sublinhou a profunda ligação do seu país ao espaço, não só através de figuras como Christer Fuglesang, mas também através de políticas estratégicas. "É uma honra para mim, como embaixadora da Suécia em Portugal, estar no mesmo palco com um indivíduo extraordinário, que fez contribuições significativas para a ciência e a exploração espacial," afirmou Eklund, referindo-se a Fuglesang. Destacou que o governo sueco reconhece o espaço como um domínio vital para a segurança nacional, o avanço tecnológico e a colaboração internacional.
Entre os pontos-chave do discurso da embaixadora, foi salientado o reforço da segurança e defesa nacional, com a Suécia a adotar a sua primeira estratégia de defesa e segurança espacial em julho do ano passado. "Esta estratégia sublinha o espaço como um domínio estratégico e operacional essencial para os interesses de defesa e segurança da Suécia", disse Eklund. Os objetivos incluem garantir a liberdade de ação no espaço, melhorar a prontidão para crises e a defesa total, e promover a colaboração internacional baseada no conhecimento.
Eklund mencionou ainda o avanço da investigação, inovação e crescimento económico através das atividades espaciais, que são parte integrante do ecossistema de investigação e inovação da Suécia. A promoção da cooperação internacional e do uso pacífico do espaço também foi um pilar, com a Suécia a reforçar a sua dedicação à cooperação internacional e à exploração espacial ao assinar os Acordos Artemis, em abril do ano passado, alinhando-se com princípios de transparência, interoperabilidade e exploração pacífica.
Finalmente, a Suécia está a reforçar o seu papel como um ator espacial credível, com investimentos em reconhecimento espacial, vigilância e comunicações via satélite, especialmente na região do Ártico, iniciativas que fortalecem a defesa nacional e as capacidades estratégicas com a NATO e a comunidade internacional em geral. "Christer, o seu legado é um farol de inspiração, encorajando-nos, a todos, a alcançar as estrelas e a ultrapassar os limites do que é possível," concluiu a embaixadora, reforçando a importância da diplomacia e da estratégia nacional no moldar do futuro espacial.