Tudo isto é jazz, tudo isto é pouco cinema
"Não chamem à minha música jazz, é música social", começa por dizer o Miles Davis de Don Cheadle em Miles Ahead, filme por si imaginado, interpretado, escrito e dirigido. Passa hoje na secção Berlinale Special depois de já ter tido a sua antestreia mundial no Festival de Nova Iorque no ano passado.
O filme não é o biopic da ordem nem uma história bem composta do nascimento e morte da lenda musical - é outra coisa: uma reinterpretação "improvisada" de alguns episódios da vida do músico. Uma reimaginação, conforme Cheadle não se cansa de chamar. Não falta música (com Cheadle a fazer questão de mostrar que é ele próprio a tocar o trompete), muita música, nem as drogas e as mulheres, precisamente aquilo que a personagem pede a um jornalista, interpretado por Ewan McGregor, para esquecer. Em boa verdade, Miles Ahead (título de um álbum de 1957) é um filme sobre a cabeça (e os demónios) de Davis, e nesse aspeto acaba por ser um tour de force de trazer a ficção para a biografia, tudo isto com a autorização da família do retratado.
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A história imagina um ponto de partida muito concreto: em 1980 a Columbia força o músico para um regresso após uma pausa de cinco anos. Ao mesmo tempo, Miles é abordado por um jornalista da Rolling Stone para um artigo sobre este suposto regresso. Mas Miles está mais perto de um outro estado e continua a olhar para o passado, em especial para o amor da sua vida, a bailarina Frances Taylor. Pelo caminho, continua a tentação pelas drogas.
O problema desta estreia como realizador de Cheadle é a sua incapacidade de dar poesia a este tributo, mesmo apesar do aparato da câmara e dos truques de encenação que parecem grandiosos, como a maneira como os raccords trocam as ordens temporais ou como a narrativa se dilui em alucinações. Trata-se daqueles casos em que fazem falta alguns golpes de mise-en-scène e um processo criativo mais apurado. Em última instância, faltam ideias de cinema. Não basta pôr num ringue de boxe Miles e a sua banda para ilustrar a referência alegórica. Era preciso mais, como por exemplo mais cenas como a final, em que vemos numa jam session Wayne Shorter e Chick Corea.
Num festival marcado por uma competição fundamentalmente medíocre vale sempre a pena espreitar a secção Forum, onde o cinema português continua a ser figura constante. Rio Corgo, da suíça Maya Kosa e do luso-suíço Sérgio da Costa, foi mais outro título a juntar-se à excelente folha de serviços portuguesa. Cinema do real que repensa um imaginário mistificado do Portugal profundo. Mais uma produção da O Som e a Fúria a desfilar pela Berlinale, neste caso para nos introduzir o senhor Silva, um vagabundo que está entre o mundo dos vivos e o mundo do Além. Na margem do rio Corgo conhece e fica amigo da jovem Ana. Uma amizade improvável filmada com uma serenidade tão bizarra como intuitiva. Não foi por acaso que venceu o DocLisboa 2015. Para já, ainda não se sabe quando chega às salas portuguesas.
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A ficção científica de Abrantes
Nas curtas, a concurso, também já passou Freud und Friends, comédia de Gabriel Abrantes que vai agradar aos alemães por um motivo simples: o jogo de gozo com o cineasta Werner Herzog, imitado com perfeccionismo pelo próprio Abrantes. Este Herner Werzog, mesmo assim com as letras trocadas, com ajuda de neurocientistas, entra para dentro das mentes dos cineastas do mundo. É muito simpático e chega a Berlim na mesma altura em que o cineasta acabou de estrear em Inglaterra Princess X, encomenda britânica e que em muitos cinemas complementa as sessões de Salve, César!, dos irmãos Coen.