Testemunhos reais de cem anos de trabalho
Estamos em 2016 e há uma mulher que procura trabalho. Tem 50 anos, é divorciada e tem dois filhos que já não exigem muito tempo. Na entrevista de emprego, tenta fintar as perguntas mecânicas e impessoais para as quais talvez não tenha sequer resposta. Mas tem de ter. A vida serpenteou-lhe as voltas e se calhar até é capaz de aprender a soldar e a programar como os homens. "Tenho muita vontade de me dedicar e de me juntar a uma grande equipa, gosto muito de desafios e, olhe, tenho muito tempo livre, é o que é, os meus amigos dizem que estou a passar um mau bocado, talvez. Sou muito persistente, nunca desisto", reitera, enquanto o seu semblante passa de descontraído para desesperado.
A atriz Sílvia Filipe é a candidata que veste a pele de tantos e tantas que anseiam por "qualquer emprego", conscientes de que carregam um número redondo no currículo. 50 anos? "Mas ainda me faltam 17 para a reforma, que vou fazer até lá?" A mulher sem nome, anónima como se pretende, prende a interrogação enquanto entoa o Fado do Trabalho, acompanhada pelo Coro Menor e pelos piano, contrabaixo e violino dirigidos por Miguel Tapadas. São também dele os arranjos musicais para adaptar o vasto repertório do cancioneiro popular português, desde Adriano Correia de Oliveira aos GNR, à peça Nós, Trabalhadores que assinala as comemorações dos 100 anos do Ministério do Trabalho e os 150 anos do Teatro da Trindade.
Noutro momento da peça, ouve-se alguém cair. "A Tita ficou presa na máquina da fábrica!" A trabalhadora que acaba por morrer serve o rosto e a alma miseráveis dos tantos que se feriram e se derrotaram nas duras condições de trabalho das fábricas clandestinas em Portugal. "Vivia-se uma miséria extrema, as pessoas trabalhavam de noite, é um período muito escuro e nubloso de onde não se sabe muito", assinala o encenador Vicente Alves do Ó, entre as indicações que vai passando aos atores e à equipa técnica de vídeo, luz e som. "Voltem às vossas posições, por favor."
Há novo capítulo da história em palco. 25 de março de 1911. Um incêndio na Triangle Shirtwaist mata 124 mulheres, a maioria jovens imigrantes, num dos maiores desastres da história da indústria norte-americana. "Os patrões bloquearam as saídas com receio de que as trabalhadoras roubassem ou fizessem pausas", repete, veemente, a atriz Sofia Marques, que juntamente com Pedro Pernas, Joana Almeida, Joana Manuel, Sílvia Filipe - com participação especial de Lara Li - completa o elenco do espetáculo que evoca as primeiras conquistas laborais, a emigração, o desemprego, a Guerra Colonial, a censura, a repressão, a formação profissional e a precariedade atual.
Inês de Medeiros, à frente da direção da peça e do Teatro da Trindade, ajudou na pesquisa histórica. "Todos os excertos de depoimentos e testemunhos são reais, é um trabalho que me dá muito prazer, adoro fazer esta consulta", revela. No final, Vicente Alves do Ó sublinha o papel do teatro enquanto instrumento de contestação. "O teatro ainda é um sítio de exercício de poder profundo, o palco é uma voz, é preciso uma espécie de coragem artística para falar nos assuntos como deve ser. As pessoas devem vir ao teatro também para se sentirem indignadas com muitas injustiças que continuam a acontecer na sociedade portuguesa. O tema do trabalho é um tema grave e sério, tentei tratá-lo aqui com muita solidariedade e ternura", explica o cineasta.
À porta dos artistas no Teatro da Trindade, no cair da noite, os elementos do Coro Menor ainda entoam os últimos poemas. Há que continuar a cantar fora do palco.