"Tem de ser Pessoa a criticar Pessoa em meu nome"

Mário de Sá-Carneiro morreu há cem anos, a 26 de abril de 1916, e estas podiam ser as cartas perdidas que Fernando Pessoa lhe escreveu. Pedro Eiras "reencontrou-as" ao imaginá-las e recriá-las. "Como um detetive, não é?", pergunta.
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Quando lhe aparece esta ideia de reescrever as cartas perdidas de Fernando Pessoa para Mário de Sá-Carneiro?

Em desejo, há 20 anos. Eu leio Pessoa, sei lá, desde os 14, e Sá-Carneiro logo a seguir. Convivo com eles há muito tempo.

Também aí já lia as cartas?

Sim, pouco depois. As cartas são fascinantes. Encenadas, mas apaixonantes. Às vezes são muito pequeninas, outras entram pelo território da má-língua. Até certo ponto, nada daquilo era para nós lermos. Mas claro que os autores, quando as escrevem, sabem que um dia aquilo acaba publicado.

Daí também a sua encenação?

Completamente. Aí não podemos ser inocentes. São textos públicos.

Quão íntima era a relação deles?

Nós não podemos saber ao certo quanto há ali de entrega e quanto há de esconderijo. O que é bom quando lemos um texto cem anos depois é podermos suspeitar daquilo que é afirmado como verdadeiro. "O poeta é um fingidor" [verso de Pessoa], então as cartas são fingimentos. Está muita coisa em jogo. Eles estão a conjurar escândalos, a medir consequências, a seduzir tudo e todos, e um e o outro; estão a testar a confiança, a zangar-se. E quando Sá-Carneiro se zanga com Pessoa é violento. Pessoa devia ser realmente muito paciente. Mas não é bonito de se ver.

Como trabalhou neste livro?

Ele tem esta regra muito exigente: eu não posso fugir às cartas que existem. Se aquelas cartas que podemos ler, e que são verdadeiras, perguntarem 20 vezes pelo saldo da livraria, eu vou ter de responder 20 vezes. Sá-Carneiro pergunta, eu respondo. O tempo todo. É uma tentativa insana, às vezes, de jogar o jogo. No xadrez, o que há de belo é que o cavalo não anda a direito, o rei não pode saltar quatro casas. O que há de belo ali é respeitar as regras, não tem piada fazer batota.

Viveu aquele ano - de julho de 1915 a abril de 1916 - com os dois?

Em vários momentos, dei por mim a fazer cálculos para perceber quanto tempo uma carta pode demorar, para saber se já é hora de Pessoa responder à carta de Sá--Carneiro. Pessoa não pode responder a uma carta que ainda não leu...

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