Ser emigrante não me afetou na moda, ser mulher e mãe de família é um estigma maior

A mesma figura de miúda reguila de quando apareceu nos primeiros desfiles de semanas da moda. Katty Xiomara recebe o DN no seu ateliê-loja na Rua da Boavista, não confundir com Avenida da Boavista, no Porto. Corpo pequeno enroscado na cadeira, olhos castanhos, vivos, sorridente, mistura peças suas com o pronto-a-vestir, combinações às vezes improváveis que também aconselha às clientes. Roupa prática, umas calças de ganga e uns ténis que conjuga com o casaco inspirado no Snoopy e a camisa da coleção 8-bits, com base nos jogos de computadores dos anos 1980. Filha de emigrantes na Venezuela, país que a formou quase até à maioridade e a marcou com um sotaque e um nome que podem confundir os mais distraídos. É e sente-se bem portuguesa.
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A vinda para Porto, aos 18 anos, coincide com o regresso de toda a família?

Não, eu vim primeiro, para experimentar e ver como estavam as coisas por cá. Tenho duas irmãs e elas ficaram. Os meus pais estavam emigrados e pensaram em vender tudo e regressar às raízes. Achei que sim, que era uma boa oportunidade e vim à frente.

É a mais velha das irmãs?

Não, sou a mais nova, com a diferença de seis anos de uma e oito de outra.

Passaram-se 25 anos desde que chegou e há ainda quem a considere luso-venezuelana. Faz sentido?

Neste momento, sinto-me muito mais portuguesa do que venezuelana, apesar do que vivi até aos 18 anos em Caracas. A minha formação-base é na Venezuela, mas não vou lá desde 1999, ano em que voltei pela primeira vez... minto, voltei no ano em que vim para arranjar as coisas para trazer e despedir-me de quem tinha deixado. De resto, tenho a ligação com a família e os amigos que lá ficaram, como é óbvio, mais nada.

Não tinha a certeza de iria ficar?

Tinha a certeza, mas havia muita coisa para organizar: arranjar casa, escolher o sítio onde estudar. Tentei entrar tanto na Faculdade de Belas-Artes, na área de Design, como na escola de moda que havia na altura no Porto, o Citem.

A moda não foi a sua primeira paixão?

Não, queria seguir Arquitetura ou Design Gráfico. Arquitetura era mais complexo porque não tive Geometria Descritiva em Caracas, o secundário era até ao 11.º, além de que estudei Humanidades. Teria de repetir o secundário e vi quais eram as possibilidades para o meu currículo. Entrei na Faculdade de Belas-Artes em Design Gráfico e no Citex, que agora é a Modatex, e pensei em conciliar os dois cursos, mas o Design Gráfico é muito exigente, temos trabalhos práticos diários. Acabei por me envolver muitíssimo na moda e fiquei, mas uma das grandes paixões era o design.

Já não é?

Continua sendo, tenho feito trabalhos nessa área. O meu marido é designer gráfico, temos uma empresa em conjunto e fazemos todo o design, desde os logótipos aos catálogos das coleções. Depois, acabam por acontecer convites peculiares, fizemos embalagens para a Compal, edição limitada, para a PlayStation, um capacete para a Seat, uma cobertura para o Nokia...

Fala sempre no plural, embora os trabalhos tenham a sua assinatura.

Porque somos uma equipa. Tenho seis pessoas a trabalhar comigo. Dou a cara mas não sou só eu. É uma equipa que tem aumentado aos poucos, mas há pessoas que estão cá há muito tempo.

Mantém um sotaque castelhano e não se percebe o som do Norte.

Não [ri-se]. A língua castelhana, realmente, cola-se muito e também depende da cultura. Na Venezuela, os filmes são dobrados, só ouvimos o castelhano, mas a verdade é que a língua cola-se. Um espanhol a falar inglês nota-se muito, já um português consegue disfarçar bem. Agora desliguei-me e já não ligo muito a isso. No início tentava corrigir.

Tinha amigos no Porto?

Não, conhecia algumas pessoas em Portugal, em Vila Nova de Gaia, em Lisboa. Acontece que os meus pais são de Águeda e comecei por viver nesta cidade, ia e vinha todos os dias [ri-se] para o Porto, uma hora e meia de camioneta para cada lado. Os meus pais regressaram depois e acabámos por arranjar um sítio onde ficar no Porto.

Mudou-se aos 18 anos para um país totalmente diferente. Foi difícil?

Foi difícil, mas não vim obrigada. Se tivesse dito que não queria vir, os meus pais não teriam vindo, não houve pressão. Não quer dizer que ficar ou não fosse igual para eles, mas na verdade quase que depositaram a decisão em mim. Viemos, continuamos por cá e está tudo bem. Acho também que a minha vinda os incentivou e nunca pus a hipótese de voltar à Venezuela. Tive dias mais difíceis do que outros. Vim para um ambiente diferente, troquei uma cidade maior, cosmopolita, por outra como Águeda, que, tal como o Porto, era muito diferente de Caracas. A cultura e as pessoas também são diferentes, estava habituada a um ambiente mais caloroso.

Mais caloroso, mais colorido, imagino, em contraponto com uma cidade mais escura, talvez mais fria, um Porto muito diferente da atualidade.

Sim, muito. Na Venezuela existe o toque, o abraço, mesmo acabando de conhecer alguém já estamos a tocar. Eu chegava junto das pessoas, que tinha conhecido se calhar há uma semana, e tocava no braço, no ombro, para cumprimentar. A reação não era a melhor. Não diria que foi um choque, mas havia esta diferença cultural. Fui-me adaptando.

Como é que matava as saudades?

Escrevia para os amigos que tinha deixado. Não havia o Facebook, as redes sociais. O número de cartas foi diminuindo e, de certa forma, vamos desligando, o que até é saudável. Foi difícil, mas diria que não foi terrível.

O Porto está muito diferente, a começar pela quantidade de estrangeiros.

Se calhar, se fosse hoje, teria sido mais fácil. A cidade mudou muito. Não só temos os turistas como os estrangeiros que aqui vivem e se adaptaram à cidade. É uma diferença muito grande. A Baixa passou por grandes mudanças desde que cá estou, ganhou vida. Quando cheguei, a Rua de Santa Catarina ainda era a Rua Santa Catarina e foi engraçado passar por tudo isso. Eu estudava na Baixa, era a minha zona.

Qual foi a maior dificuldade?

A língua. Apesar de os meus pais serem portugueses, nunca falávamos em português. Só conhecíamos a língua portuguesa de ouvir. Antes de vir, fiz um curso para perceber como funcionava. Sobretudo em termos de fonética, achava os sons muito estranhos. Realmente o português é parecido com o castelhano, mas isso faz que existam muitos erros, palavras que, por exemplo, parecem que têm um "m" no meio e, afinal, não têm. As pessoas faziam troça quando eu falava, riam-se, era muito caricato. A outra dificuldade foi cultural, sentir que havia alguma frieza no trato, que se devia manter distância. Nunca fui uma pessoa muito extrovertida e, se calhar, tornei--me ainda mais introvertida.

Mantém família na Venezuela?

A minha irmã mais velha já está cá, com os meus sobrinhos, mas ainda lá vive a minha irmã do meio.

O país vive uma situação muito difícil, deve ser mais complicado para quem deixou familiares e amigos.

Muito complicada. Se calhar, saímos da Venezuela no momento certo, a minha irmã mais velha por umas razões, eu porque assim o decidi há muito tempo. A irmã que lá ficou tem quatro filhos, gosta de lá viver, é mesmo a questão política que afeta o país em todos os sentidos. As pessoas querem ficar lá e lutar por um país melhor. À partida, não vejo a minha irmã regressar.

Acredita que conseguirão derrubar o regime de Nicolás Maduro?

Quero acreditar que sim, mas acho difícil.

Vinham regularmente a Portugal?

De quatro em quatro anos, de cinco em cinco, terei vindo umas três vezes ao longo desses 18 anos.

Nessa altura, circulavam livremente nas ruas de Caracas?

Sim, sempre foi uma sociedade com mais perigos do que Portugal. Nunca vivi uma situação de perigo, mas tenho amigos que sim, inclusive o meu pai chegou a assistir a um tiroteio na rua e teve de se proteger. Mas a situação era muito diferente da que se vive atualmente. Hoje, a atenção está nas manifestações, na repressão, mas há muita criminalidade, com um funcionamento de quase máfia organizada, raptos que depois são cobrados mensalmente.

Os seus pais correspondiam ao protótipo do emigrante, tinham uma mercearia ou uma padaria?

Não [ri-se]. O meu pai trabalhava numa empresa de ferragens.

Mas porque é que não voltou à Venezuela desde 1999?

Fui lá em dezembro de 1999, sete anos depois de vir para Portugal, não notei diferenças, não havia edifícios novos, estradas novas, estava tudo muito igual ou mais degradado. A única coisa boa foi rever as pessoas. Com o tempo, percebi que as pessoas também viajavam para cá e preferi fazer esses encontros em Portugal. Acabei por me envolver mais neste ambiente, e há também a questão do trabalho, nunca tenho períodos longos de férias e faço-as por perto.

Em Portugal?

Sim, já viajo para fora em trabalho.

Visita só os aeroportos e as passarelas.

[ri-se] Sim, é muito complicado, passamos o tempo nas feiras, que geralmente são em sítios isolados, não conhecemos as cidades. O único momento livre é no dia da chegada.

Quando chegou a Portugal, sentiu-se emigrante?

Senti que estava num ambiente diferente. Nunca me trataram mal ou deforma pejorativa, mas sentia que era estranha. Tive de pensar: "É um novo conceito de vida, tenho de me adaptar."

Prejudicou-a no mundo da moda?

Não, penso que não. Esta área é muito complicada. Há outras que também são, mas a moda é complexa. Existem lobbies aos quais, para ser franca, sou um pouquinho outsider. Não sou aquele tipo de pessoa que pertence à festa, ao ambiente de bastidores. Sou mulher, mãe de família, talvez isso marque mais. Ser emigrante não afetou, ser mulher e mãe de família é um estigma maior.

E o facto de viver no Porto?

De início, sentia que poderia ser diferente se vivesse em Lisboa. Hoje não, o Porto mudou muito. Vêm à minha loja turistas que procuram os designers do Porto, é muito gratificante.

Está ligada ao Portugal Fashion, participou pela primeira vez em 1996. Alguma vez falhou este certame?

Falhei, esse e também a Moda Lisboa, quando tive a minha filha. Parei quase um ano. Continuei a trabalhar em projetos, mas saltei uma coleção.

E participações no estrangeiro?

Fizemos Japão, China, Paris, Londres, já não fazemos Berlim, Barcelona, Nova Iorque e Las Vegas. Começámos a fazer Nova Iorque , fizemos quatro desfiles a título pessoal, depois surgiu este convite do Portugal Fashion e fizemos as duas últimas edições. Participei em desfiles coletivos em Paris e num individual.

Compensam essas participações?

É muito difícil ver os números de um desfile, perceber até onde nos leva mais longe, mas consegue-se ver a movimentação em termos de imprensa. Nos dias de hoje, sente-se muito mais a repercussão que tem nos media, se isso reverte nas vendas é que é difícil de perceber. O que defendo é que se deve dar continuidade após o burburinho do desfile, dar a conhecer a marca, o que também passa pelas redes sociais, bloggers. O burburinho do desfile é uma semana, não é mais do que isso. O desfile coloca-nos num patamar diferente, mas tem de ser mais do que isso.

Quanto custa participar numa feira dessas?

Cerca de oito mil euros.

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