"Quero construir objetos que estão vivos"
É uma nómada que gosta de perceber o que é o espaço, o momento, o outro. Diz-se tão intuitiva quanto disciplinada, e esta reflexão podia aplicar-se também às obras que cria em nome próprio desde que deixou a família da Damaged Goods, a companhia da coreógrafa Meg Stuart, e foi limpar quartos de hotel em Berlim para financiar as suas explorações artísticas. Queria sair do palco e ir para a galeria. "Não sou coreógrafa, sou uma artista visual performativa - gosto de estar na régie com o som, a luz e o vídeo, a dar deixas a quem está no palco. Posso identificar-me como coreógrafa porque afeto o espaço dos corpos - no sentido de os transformar, não apenas de os dirigir."
Nascida em Joanesburgo em 1975 e transplantada aos 15 anos para Portugal, Vânia Rovisco fez a sua formação em dança contemporânea já adulta (Fórum Dança, Danças na Cidade, Centro Coreográfico de Montpellier) e, logo a seguir, audições para a companhia da coreógrafa americana, onde cresceu como intérprete-criadora durante sete anos. E percebeu o que queria fazer. "Eu venho da improvisação, o que me interessa é que o objeto esteja a acontecer ao vivo. Em todas as minhas peças o corpo é uma matéria, tal como a luz, o espaço ou o som - e não "em relação" com a luz, espaço ou som. Todas as camadas se equiparam e, para isso, cada uma delas tem de ser autónoma."
Foi assim num dos primeiros desafios que aceitou quando, há cinco anos, regressou a Lisboa - um projeto artístico com os hóspedes de um albergue para sem-abrigo, no âmbito do festival Todos - com "pessoas que não tinham as ferramentas da dança". Voltou a ser assim em Equanimidade - Ânimo Inalterável, que apresentou recentemente no Festival Walk&Talk, em Ponta Delgada, onde pela primeira vez teve a oportunidade de criar com um grupo de 14 intérpretes profissionais.
"Eu estava mesmo à procura do segredo da ordem no caos. Quero transformar corpos, mudar a sua linguagem física, procurar outras relações para ter outras possibilidades de composição com as pessoas e delas com os outros. Quero construir objetos que estão vivos e, para que isso aconteça sem ficar tosco, tem de haver uma composição afinada, todos têm de estar sólidos no seu trabalho de improvisação. É como construir um diamante em palco, algo que se está a refinar à vista de todos. Exige dedicação ao processo, como uma ferramenta de descoberta e entendimento. O que fiz no Todos foi um prelúdio, o Equanimidade foi o fechar de um ciclo. Passei mais de uma década a pensar nisto, a fazer este percurso, e são os percursos que nos dão forma."
Construiu o solo The Archaic, Looking Out, The Night Knight num processo que também continua, trabalhando o seu próprio corpo para nele "encontrar o arcaico, o intuitivo, o sem códigos e chegar ao corpo atual" e, noutra série em andamento - Reacting to Time - Os Portugueses na Performance -, atualiza as criações de artistas pioneiros da performance (Manoel Barbosa, Fernando Aguiar ou António Olaio, por exemplo) pela transmissão da experiência direta a novos intérpretes, que as apresentam publicamente.
"Descobri que havia todo um legado performativo português, um arquivo vivo para passar de corpo a corpo. Passamos a vida a reagir ao momento, temos de começar a agir de forma coletiva e política. Mas para isso temos de ter memória, lastro. Estamos aqui para nos inspirarmos e fazer crescer uns aos outros. E isto faz a comunidade artística ser mais inteligente e potente, reconhecendo as fontes, em vez de sermos cães a defender o seu osso. Estamos todos interligados, vamos beber ao mundo e o mundo vem beber a nós."