Peritos em Lisboa para observar a Galáxia Tabucchi

Começa hoje o grande encontro que evoca e analisa a obra do escritor italiano Antonio Tabucchi que adotou Portugal como parte principal do seu universo literário. Um colóquio de dois dias na Fundação Gulbenkian.
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O tradutor japonês de 15 livros de Antonio Tabucchi, Tadahiko Wada, integra a galáxia de estudiosos da obra do escritor italiano que chegaram a Lisboa nas últimas horas para debater o seu legado. Wada viajou mais de meio dia desde Tóquio para falar alguns minutos na próxima terça-feira numa das sessões do colóquio Galáxia Tabucchi com que a Fundação Calouste Gulbenkian evoca o autor falecido a 25 de março de 2012.

Wada conheceu Antonio, é assim que o chama, no final dos anos 1990, quando já traduzira dois livros seus. Confessa que não gosta de conhecer os autores que traduz: "É um obstáculo porque a obra perde a transparência." No entanto, entenderam-se logo: "Foi uma empatia à primeira vista e que continuou. Antonio é um dos escritores italianos contemporâneos mais amados no Japão, só tendo como rival Italo Calvino." Quais as razões para esta preferência por parte dos leitores japoneses? "Encontram nos livros o paradigma da Europa e não só o da sua Itália", esclarece.

Entre as dezenas de especialistas na obra de Tabucchi que se reúnem em Lisboa entre hoje e terça-feira existem várias histórias de amizade e de interesse literário para se terem dedicado a ela. A de Tadahiko Wada é assim: "Aprendi italiano devido a um boom de autores desse país no Japão que se deveu ao Maio de 68, porque vários estudiosos japoneses encontravam-se em Paris e descobriram a obra de Cesar Pavese. A partir deste autor deu-se um grande interesse por escritores italianos; os jovens começaram a lê-los e a exigir traduções. Hoje, Tabucchi é o mais procurado, a seguir a Italo Calvino."

Wada vai estar integrado num painel de tradutores durante o colóquio. Foi essa tarefa que o fez descobrir, por exemplo, qual a palavra que melhor caracteriza a obra de Tabucchi: fissura. Porquê esta, que no dicionário de italiano se explica como "o que interrompe a continuidade de uma superfície"? A resposta é direta: "Quando Tabucchi escreve, encontra sempre uma abertura que inevitavelmente deixa passar a luz sobre uma ferida." Foi essa marca que encontrou no livro do italiano que mais aprecia, O Tempo Envelhece Depressa, em que se recorda um episódio entre "uma menina e uns militares que, de forma muito intensa, recolhe o sentimento da passagem do tempo, uma fissura cronológica que magoou o próprio Antonio".

Espólio particular na exposição

A reunião de tradutores, investigadores, editores, cineastas e leitores especiais da obra do escritor que viveu em Portugal grande parte da sua vida devido à descoberta do poema de Fernando Pessoa Tabacaria, deve-se a um projeto inicial da mulher, Maria José de Lancastre, a comissária de Galáxia Tabucchi. Enquanto orienta e ajuda na montagem da exposição Tabucchi e Portugal nas instalações da fundação, explica que este encontro se tornou "gigantesco" apesar de a intenção inicial ser apenas um "colóquio com especialistas" (ler programa à direita). No entanto, diz, "há muita gente interessada na obra, que a estuda porque ainda existem temas para investigar, daí que um dos painéis tenha que ver com as novas vias hermenêuticas por descobrir". Por isso, acrescenta, "o encontro foi tomando um caminho diferente, no seguimento de outros já realizados desde 2012 em França, Bélgica e Japão".

Lancastre explica que o título para o encontro surgiu logo de início: "O nome Galáxia apareceu ainda se estava no início porque tem que ver com o facto de aparecer repetidamente na obra a referência a muitas estrelas, astros e constelações. Antonio foi sempre uma pessoa que olhou muito para o céu em sentido real porque tinha muito que ver com ele e como precisávamos de uma metáfora abrangente de todos os seus interesses era impossível evitar."

O colóquio na Gulbenkian pode ser um momento de novidades investigatórias mas, garante Maria José de Lancastre, não contará com revelações como a de existirem inéditos: "O que havia inédito já foi publicado, inclusive o romance Para Isabel, que era o mais sensacional. Quando um escritor morre nem sempre deixa fundos e, no caso de Antonio, estou certa de que não gostaria que fossem publicadas coisas que não quis editar em vida. Existem ainda textos inéditos, é claro, sempre com um cariz muito português, pequenos textos de reflexão muito interessantes, bem como estudos sobre a obra divulgados em vários países.

Quanto à exposição que integra o colóquio Galáxia Tabucchi, de responsabilidade da comissária e dos dois filhos do casal, os leitores poderão ver em nove vitrinas a cronologia da sua vida, desde fotografias enquanto criança e adolescente, à troca de correspondência com autores portugueses, como será o caso de cartas com Mário Cesariny e José Cardoso Pires, ou ainda em duas dezenas de metros de uma parede onde a reprodução de muitas das entrevistas e notícias publicadas com e sobre Antonio Tabucchi. Não faltará, no entanto, documentação inédita do espólio do escritor na exposição que fica patente até 7 de maio, como refere: "Apresentam-se pela primeira vez documentos preciosos do espólio pessoal, desde as suas primeira fotografias que revelam a curiosidade do observador atento, a manuscritos e testemunhos da relação contínua de Tabucchi com os artistas e escritores portugueses durante cerca de 40 anos."

A expansão da Galáxia Tabucchi de um breve encontro para uma reunião com participantes de várias partes do mundo acontece porque "não houve ninguém que não quisesse vir!" É o que refere a coordenadora cultural da Gulbenkian, Maria Helena Borges: "De um dia passou a dois; de uma exposição pequena foi preciso uma sala maior; a coincidência de datas com o Festival do Cinema Italiano facilitou a exibição de filmes a propósito do escritor, e não se deixou de fazer uma sessão de jazz, música de que gostava muito." Ou seja, conclui, "é um dos maiores eventos no género".

Helena Borges não deixa de apontar uma situação comum a muitos dos leitores do escritor: "O primeiro objetivo era um colóquio internacional para trazer estudiosos da obra do estrangeiro e mostrar o que era Tabucchi em Portugal. Para mim, Tabucchi é um escritor português. Sabemos que não nasceu cá, mas imensa gente tem essa ideia, apesar de os italianos o tratarem como um autor do seu país. Agora, poderemos perceber como o enquadram no universo da literatura portuguesa. A história de vida portuguesa dele tem um grande simbolismo ao descobrir Pessoa e alterar-se completamente. E ninguém quis faltar, até o grande ator Fabrizio Gifuni vem fazer leituras com Jorge Silva Melo. Decerto que com este programa muito completo e onde os painéis se complementam ao longo dos dois dias iremos ao mais fundo da sua obra, à qual toda a elite intelectual portuguesa está ligada."

Para os responsáveis do colóquio este não é um encontro apenas para especialistas, antes voltado para o público em geral, com entrada livre e disponibilidade de consultar livros em várias línguas.

Um novo livro de Tabucchi

A morte de Antonio Tabucchi em 2012 não impediu a editora D. Quixote de continuar a publicar e a reeditar a obra do escritor. Nesse ano foi lançado O Tempo Envelhece Depressa; em 2013, Viagens e Outras Viagens e O Jogo do Reverso/Pequenos Equívocos sem Importância; em 2014, o inédito Para Isabel - Um Mandala; em 2015, Os Voláteis de Fra Angelico e em 2017, Praça de Itália. Coincidente com o colóquio Galáxia Tabucchi, os leitores têm um novo livro do autor: Autobiografias Alheias. Um volume inédito com textos ensaísticos que refletem sobre a própria obra - Afirma Pereira ou Mulher de Porto Pim - e explicam em muito o autor.

"Evitar qualquer forma de exibição"

Seis anos após a morte de Tabucchi este é um grande encontro sobre o homem ou a obra?

Raramente se vê uma tão grande quantidade de manifestações de afeto e de participação, que intensificam o estudo da obra. No estrangeiro, existe sempre uma atenção particular e o encontro da Gul-benkian tem o mérito de convocar todos os críticos que em Itália e na Europa têm escrito sobre ele, bem como amigos como Salvatore Settis e o mestre admirador Eduardo Lourenço.

O título Galaxy Tabucchi é a definição perfeita?

É original e bem achado, porque faz alusão à vastidão do que o escritor tocou. Não só o conto, a narrativa, mas o ensaio, a política e o empenho social. Em particular, a sua escrita e reflexão, a riqueza das suas leituras: desde a antiguidade clássica ao contemporâneo, da história à filosofia, da ciência à arte.

Escrevia sobre ele aquando da morte. Como foi continuar?

Nos últimos tempos da sua vida estávamos a trabalhar numa parte do seu último livro. Era um contacto contínuo desde o primeiro encontro, interrompido com a doença e a dificuldade dos últimos meses - disso não queria falar. Desde então continuei a escrever sobre ele, até num livro que irá sair em Portugal.

Os seus romances exibiam muitos sentimentos, mesmo que escondesse os próprios. Porquê?

Os seus personagens observavam a dinâmica do pensamento e do sentir, representando uma numerosa tipologia humana, mas o escritor evitava qualquer forma de exibição ou de uma autobiografia declarada, mesmo que se possa encontrar pontos de convergência.

Qual foi a importância de Portugal para o seu trabalho?

Uma enorme importância na vida e na escrita, visível através da grande influência da cultura, hábitos, música - fado -, gastronomia - tantas receitas que estão nos livros - e dos sentimentos - a saudade.

Teve algum projeto literário interrompido pela morte?

Existia o livro que estávamos a fazer, só publicado no ano a seguir à sua morte, e andava a pensar num conto longo ou num romance breve que teria Walter Benjamin como protagonista. A sua secretária em Lisboa estava repleta de livros sobre o assunto, com os quais desejava introduzir-se na atmosfera daqueles anos difíceis.

"Uma busca como a de Pessoa"

Como está o interesse na obra de Antonio Tabucchi em Itália?

Ele é considerado um clássico contemporâneo: fascinou gerações de leitores devido às suas narrativas com um sentido da vida, a obsessão do fim, a nostalgia e, pode dizer--se, a incorporação do conceito saudade que descobriu em Portugal. Mas é também um autor fortemente europeu, mesmo que a localização geográfica dos seus livros vá mudando.

É curador da edição italiana. Que livros seduzem o leitor?

O principal fator é a tensão que Tabucchi introduz nos seus textos e a capacidade de permitir a compreensão do outro, como no Nocturno Indiano. Existe uma busca como a de Fernando Pessoa através dos heterónimos, e não é de mais recordar a descoberta deste poeta através de Tabacaria em 1964. Pessoa usa o alter ego, Tabucchi cria relatos fantasmagóricos que derivam da angústia, como se pode ver em Requiem, o romance escrito em português, que tem por subtítulo Uma alucinação.

A influência de Portugal é importante para a sua obra?

Portugal era para os italianos um país remoto e bastante desconhecido. Tabucchi começou a estudar a língua e a literatura portuguesas em Pisa e a frequentar Lisboa, onde conhece a rapariga que se torna sua mulher. No fim dos anos 1960, ao mesmo tempo que apresenta a tese sobre o surrealismo português, adota Portugal e o país também o adota. Depois, com a democracia, vive com atenção este período.

Era um homem livre e com uma opinião política cimentada. Nota-se esse reflexo na obra?

Nunca foi um homem de um partido, mesmo que de esquerda. Não era um revolucionário mas, como ele disse, um intelectual burguês com um forte sentido de justiça. Participou em muitos combates políticos, mas entendia a designação de escritor de um modo muito amplo.

Há alguma surpresa à espera neste encontro seis anos depois?

Seis anos após a morte ainda não estamos convencidos de que aconteceu, afinal um escritor está vivo enquanto inquietar os leitores. A Gulbenkian já lhe dedicara um evento em 1999 e, desta vez, faz questão de dar uma atenção à obra e à sua figura com um colóquio de grande dimensão e em particular à sua ligação forte com Portugal.

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