Paul Auster diz que não está amargo mas muito irritado
Paul Auster, um dos escritores norte-americanos mais apreciados na Europa esteve no Festival Internacional de Cultura de Cascais. Mesmo cansado após um mês em digressão, não teve mão leve para o 45º (Donald Trump).
O escritor norte-americano Paul Auster é visitante habitual do nosso país, mas desta vez veio até cá diferente. Está amargo, dá respostas um pouco inesperadas e sem papas na língua. Não que seja sempre assim, pois ainda este domingo à noite fez questão de espalhar o seu charme recém-septuagenário perante uma concorrida plateia que encheu - e não coube toda a gente - o auditório da Casa das Histórias Paula Rego no Festival Internacional de Cultura de Cascais. A entrevistadora Patrícia Reis não teve dificuldade em obter boas deixas de quem sabe muito de literatura e de mais uma dúzia de temas políticos, mas na entrevista que aceitou dar aos cinco jornalistas, num espaço sem espetadores, a conversa foi outra, menos afável.
Paul Auster está mais velho fisicamente, estranhamente ganhou os anos que não aparentava até à sua última estada em Portugal. Quanto à paciência que sempre demonstrou nas conversas, essa ausência começa logo com as novas regras que transformaram as entrevistas pessoais numa única, coletiva. Tudo bem, é um escritor com carreira e já deu mil entrevistas, portanto opta por fazer como aprendeu em Espanha nas vésperas da chegada a Lisboa: todos juntos. Com o aviso de não se repetirem perguntas, se possível nem esmiuçar as questões já feitas. E não se coíbe de questionar se os entrevistadores leram o livro, o tal intitulado 4321 que tem mais de 800 páginas, nem de contestar o interesse de certas perguntas...
A grande inovação de Paul Auster nesta vinda a Portugal é estar a fumar um cigarro a vapor, meio escondido entre a mão grande, soltando etéreas baforadas entre questões. Abandonou as cigarrilhas e o que pretende mesmo é falar de política, não sendo por acaso que refere a hipótese da morte de Donald Trump por duas vezes: "Se ele não morrer entretanto... Se terminar o mandato...", não evitando a palavra morrer de forma explícita.
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Aliás, quando a entrevista coletiva se encaminha para o assunto 45.º - é assim que se refere ao 45.º presidente dos Estados Unidos da América -, os olhos do escritor ganham outro brilho. No entanto, se as questões são sobre o seu último romance, a disposição é bem menor para se alongar nas respostas. Trump sim, é um tema que o interessa, afinal a dado momento até questiona a sobrevivência da democracia americana e que as instituições dos Estados Unidos estão a ser destruídas por quem nas secretarias de Estado as deveria preservar. A sua resposta mais longa em toda a entrevista coletiva acontece quando se embrenha nas questões do poder judiciário norte-americano, criticando a deriva à direita, recorrendo a exemplos como se estivesse a reescrever este seu último e longo romance, o tal 4321. No fim, lá dirá: "Espero que a América sobreviva [a Trump]."
Como Paul Auster está há um mês em digressão pela Europa - diz-se que será a última vez que embarca numa promoção com esta duração -, também toca noutros casos, como o brexit: "Não tenho um único conhecido que tenha votado a saída do Reino Unido da União Europeia". Auster faz questão de referir que não compreende a razão de o referendo britânico poder ser levado a sério bastando apenas 50% dos votos para se avançar, mas como não houve hipótese de fazer a pergunta no seguimento, foi impossível pedir-lhe um comentário ao sistema eleitoral dos EUA que elegeu o candidato menos votado.
Em seguida, Paul Auster volta ao assunto: "Não tenho um único conhecido que tenha votado em Trump." De permeio, defende o candidato perdedor para Hillary Clinton, o senhor Bernie Sanders, e recorda medidas de Barack Obama. Tudo isto é comentado sem aceitar qualquer existência de autobiografia no tal romance 4321, tão espesso que assusta a maioria dos leitores fiéis de um dos escritores americanos mais amados neste continente, mas que contém inúmeras referências políticas - Vietname, o Caso Rosenberg, Nixon, por exemplo -, ótimos paralelos entre a atualidade e o grande conteúdo do seu romance.
No final da entrevista coletiva, pergunta-se diretamente a Paul Auster porque está mais amargo desta vez? O escritor olha como que espantado e nega que o esteja. Então, usa-se outra palavra. Está mais irritado? Aí sim: "Estou muito irritado, mesmo muito com tudo isto que está a acontecer." "Tudo" é Trump, o populismo e a violência que as sociedades atravessam nestes últimos anos. "Tudo" aquilo que tem alimentado os seus anteriores romances, como foi o caso da governação de George W. Bush, o sistema de saúde norte-americano, a falta de literacia do americano médio, entre múltiplos temas.
Só faltou comentar a coincidência desta entrevista coletiva com o pior atentado de sempre em território norte-americano, afinal ontem perfaziam 16 anos sobre o fim das Torres Gémeas. Mas essa questão não está na ordem do debate, até porque nem entra no tal romance 4321, que só vai até à década de 1970, e fica-se pela questão de não autorizar a publicação dos seus romances na China e na Turquia, entre outros países, por não serem respeitados os direitos humanos em tais países. Ainda é levantada a questão sobre se se vai candidatar à direção do PEN Club norte-americano, mas é sucinto: "Esse ainda é um não-assunto." Prefere comentar a reunião dessa organização para onde se dirigirá daqui a dois dias na Ucrânia, onde aguarda por vários contactos sobre as quebras dos direitos humanos.
Diga-se que Paul Auster anda há um mês em digressão europeia, que começou pelos países escandinavos, passou por Espanha antes de chegar a Portugal, e ainda visitará França, repita-se, o país que mais o ama neste continente. Está cansado, nota-se, e até confessa que deseja regressar à sua casa em Nova Iorque e voltar à escrita, pois está com várias ideias a fervilharem na cabeça, além de que tem um novo livro - não-ficção - para lançar dentro de dias.
Quanto ao seu método de trabalho, já referira que tem pelo menos intenção de escrever mais romances, explica que se mantém a mesma pessoa: "Levanto-me cedo, vou para o escritório e trabalho 3 a 4 horas. Em seguida, almoço e dou um passeio. Enquanto caminho, encontro as soluções para os problemas que se apresentavam no livro na parte da manhã." Acrescenta que durante a noite o livro se escreve sozinho na sua cabeça: "Os meus livros vêm do inconsciente." Sem fugir do tema, ainda explica por que se tornou escritor: "Não somos nós que escolhemos a atividade, somos escolhidos."
Antes de dar por terminada a coletiva, Auster referirá a existência de Siri Hustevedt, a mulher com quem passa as noites enroscado no sofá da sala a ver filmes americanos dos anos 1930 e 40: "Há um canal que só passa estes filmes restaurados - existe cá algum assim? - e que nos levam até àqueles anos da formação dos Estados Unidos." O único país que, esclarece, "foi inventado" de raiz pelos seus habitantes e onde quer viver, eliminando qualquer hipótese de se perguntar se viria morar para Portugal como fez a sua conterrânea Madonna.
Além das respostas que a entrevista coletiva proporcionou, o DN questionou uma afirmação sobre a inexistência de um museu sobre a escravatura nos EUA e contrapôs se a literatura feita pelas segundas e terceiras gerações de imigrantes substitui essa ausência, como é o caso do premiado romance de Colson Whitehead: "É um romance muito premiado, mas apenas uma pequeníssima parte dos leitores americanos terá capacidade para o ler." Não pela dificuldade da narrativa mas pela iliteracia de 65% do povo norte-americano, disse.
Quanto ao 4321, recordou-se o papel do editor Max Perkins a cortar os longuíssimos romances de Thomas Wolfe e se isso deveria ter acontecido no seu enorme livro: "Se achasse que não estava perfeito não o teria entregue ao meu editor." Deixando bem claro que também não aceitaria uma imposição da editora nesse sentido, Auster garante que o livro tem a dimensão perfeita e só o lê quem quiser.
Como o livro refaz quatro vezes a história do mesmo protagonista, questionou-se com qual se identificava mais, sendo a resposta "todos eles", assunto sobre o qual já tinha afirmado que o quarteto era uma criação literária e não autobiográfico, à exceção das páginas em que trata da criação de um jogo de cartas, mesmo se houvesse vários paralelos com o próprio.
Sobre se 4321 era tão gigante porque seria o último livro, Auster responde: "Espero que não, já tenho planos para outro livro e quando voltar a Nova Iorque acabarei um de não-ficção. Deste tamanho, duvido que vá escrever outro assim, mas haverá mais romances."