"O Rio": a cabana do pescador e dos seus fantasmas

Ruben Gomes protagoniza o espetáculo encenado por Jorge Silva Melo. No Teatro da Politécnica, em Lisboa, até 22 de outubro.
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O sol está a pôr-se. A cabana ilumina-se com os raios cor de laranja. Mas ele não quer saber, está atarefado a preparar todo o equipamento para a sua pescaria. Lanterna, carreto, macete. Não há tempo para lirismos. É preciso calçar as galochas e apressar-se. Este é um momento único. Uma vez por ano, quando não há lua, no final do verão, quando o rio enche, esse é o momento certo para pescar trutas mariscas. Ele não quer saber do pôr-do-sol, ela não está com disposição para ir pescar. É a primeira vez que ele a traz ao seu refúgio. O rio é logo ali, quase podemos ouvir a água a correr.

O Rio é um daqueles espetáculos intimistas de que Jorge Silva Melo tanto gosta. Um homem e uma mulher (ou duas ou mais, mas já lá vamos). Uma cabana no meio da floresta. Duas pessoas a conversar e a fazer as coisas de todos os dias - sair da banheira e trazer a toalha enrolada na cabeça, ler um livro, arranjar o peixe, preparar o jantar, comer, conversar, fazer planos, partilhar memórias. O encenador conta que já gostava do trabalho do autor, o britânico Jezz Butterworth, mas quando descobriu esta peça soube imediatamente que a queria fazer. Butterworth é o autor de sucessos do Royal Court, como Mojo (1995) ou Jerusalem (2009) mas é também um dos autores que contribuiu para Spectre (2015), o filme de Sam Mendes com o agente James Bond. Ao princípio, Butterworth mostrou-se renitente, uma vez que a peça ainda não tinha sido feita noutra língua que não inglesa mas, segundo Silva Melo, ficou mais tranquilizado ao perceber que o encenador tinha trabalhado e conhecido de perto o dramaturgo Harold Pinter, que foi seu amigo.

A escrita de Butterworth é "exigente, poética, enigmática", diz Silva Melo. E é precisamente assim O Rio, onde as personagens se vão revelando aos poucos: o Homem (interpretado por Ruben Gomes) que espera todo o ano por aquela noite escura, sem lua, para ir pescar no rio, a Mulher (Rita Brutt) por quem está apaixonado e com quem quer partilhar esse momento. Só que esta não é uma história de amor assim tão simples. Porque há Outra Mulher (Vânia Rodrigues). A ação decorre, sem sobressaltos, mas elas vão intercalando as cenas, ora uma, ora outra. "Quantas mulheres já trouxeste aqui?", pergunta ela. "És tu a primeira", responde ele. E nós sabemos que não, que há pelo menos duas. Ou mais. Ou que não haverá nenhuma e tudo não passa de um delírio daquele pescador de trutas. A dúvida está lançada, cada espectador fará a sua leitura, está tudo em aberto. "No final até nos questionamos se ele alguma vez pescou alguma coisa", atreve-se Jorge Silva Melo.

É impossível não lembrar a célebre frase de Heraclito: não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio. Este Homem parece preso num momento da sua vida, a revivê-lo de cada vez que vai pescar ao rio. A procurar reescrever o passado ou a procurar, sem sucesso, um novo desfecho para a sua história. "A influência de Pinter é enorme: a narrativa desencontrada, a reflexão sobre o tempo", explica o encenador.

Cinéfilo como é, Jorge Silva Melo reconhece que trouxe para o palco a América selvagem de filmes como O Desporto Favorito dos Homens, de Howard Hawks. E mostra que é possível discutir a essência do amor enquanto o peixe está no forno. Peixe verdadeiro, que o ator Ruben Gomes amanha à nossa frente, a meia luz, numa das cenas mais perturbantes e belas da temporada.

O Rio
Pelos Artistas Unidos
Teatro Politécnica, Lisboa
Até 22 de outubro
10 euro (6euro à terça-feira)

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