O que esperar deste regresso de Chico Buarque a Portugal?
"Minha embaixada chegou/ Deixem meu povo passar/ Meu povo pede licença/ Pra na batucada desacatar." É com estas palavras que o músico brasileiro Chico Buarque tem começado os seus concertos desde que, em outubro do ano passado, pôs as Caravanas na estrada. E são, curiosamente, palavras que não pertencem a nenhuma das suas canções mas a um samba do compositor Assis Valente, lançado em 1934 na voz da cantora Carmen Miranda. Provavelmente, poucos dos que vão estar nos lotadíssimos seis concertos de Chico Buarque em Portugal conhecerão este samba. Mas não desanimem, haverá muitas músicas que todos conhecem no alinhamento.
"Com o repertório que ele tem, bem poderia fazer um concerto só com as pessoas a cantar, mas ele constrói os concertos sempre com uma mensagem", explica a fadista portuguesa Carminho que não só já viu o concerto de Caravanas duas vezes no Rio de Janeiro como teve o privilégio de, como amiga do músico, assistir ao ensaio geral e ver como toda a banda se preparou durante um mês inteiro para a estreia no palco: "O Chico é muito metódico, muito trabalhador e meticuloso, ensaia muito", conta. "Foi incrível ver como as coisas estão rodadas e eles são músicos incríveis e muito profissionais." Tanto perfeccionismo não permite grandes improvisações, queixam-se alguns. Por exemplo, mesmo com tantos amigos músicos em Portugal, não se espere que algum deles seja convidado a subir ao palco dos Coliseus. Carminho compreende: "Ele tem algo a dizer com aquele espetáculo e as coisas não mudam só porque a conjuntura muda." Ainda assim, Carminho garante que vai voltar a vê-lo e que nunca se farta: "Só não vou todos os dias porque tenho concertos meus", ri-se.
Entre discos e livros
A última vez que Chico Buarque atuou em Portugal foi em 2006, quando trouxe o álbum Carioca. Entretanto, lançou o álbum Chico (2011), andou em digressão pelo Brasil e publicou o seu quinto e mais ambicioso romance, O Irmão Alemão (2014).
Numa entrevista ao jornal El Pais a propósito desse livro, ele explicava: "A música popular é uma arte mais da juventude, com o tempo ela já não flui com a abundância daqueles primeiros anos. Tenho que me esforçar mais, procurar mais, é mais difícil. No começo você tem um milhão de ideias, tudo em torno serve para fazer uma canção. Depois fica menos inspirador".
Aos 73 anos, o músico que é tanto conhecido pelas suas canções como pelos olhos azuis com que ainda destrói corações parece já ter pouco a provar. Chico já explicou várias vezes que não é capaz de fazer as duas coisas ao mesmo tempo: ou está a escrever um livro ou está a fazer um disco. Mas, apesar de a literatura estar a ganhar um peso maior na sua vida e até nos prémios que tem ganho (Prémio Casas de las Américas para Leite Derramado e Prémio da Associação Paulista dos Críticos de Arte para O Irmão Alemão), não há qualquer indício de que a música esteja a perder espaço, tal como este último disco, Caravanas (2017) deixou bem claro.
Estas são as Caravanas
O disco foi lançado em agosto do ano passado com apenas nove temas e 28 minutos de música. Não é preciso mais. Das nove canções, sete eram inéditas e duas eram composições de Chico mas que ele nunca tinha colocado num disco em nome próprio: A Moça do Sonho, gravada por Edu Lobo em 2011, e Dueto, gravada com Nara Leão em 1980. Mas este novo Dueto, feito com Clara Buarque, é atualizado, incluindo referências aos novos tempos e a uma série de plataformas digitais, com avô e neta a dar risadas cúmplices.
O outro neto, Chico Brown (igualmente filho de Helena Buarque e Carlinhos Brown), de 21 anos, também marca presença em Caravanas, como compositor e guitarrista de Massarandupió.
Além destes temas, o disco inclui, logo a abrir, Tua Cantiga, a tal canção que deu que falar porque há um momento em que o narrador (um homem casado) diz à sua apaixonada: "Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir". Levantaram-se logo vozes acusando Chico Buarque de machismo e de normalizar as relações extraconjugais. No seu Facebook oficial, o músico brincou com a situação citando uma conversa alegadamente ouvida numa fila do supermercado: "- Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? - Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante." Seja como for, a canção é uma pequena maravilha e mais uma das declarações de amor arrebatado tão típicas do cantor.
As nove canções de Caravanas têm integrado o alinhamento do concerto, com a cantora Bia Paes Lemes a assegurar o Dueto. O espetáculo é dedicado a Wilson das Neves, baterista que acompanhou Chico Buarque durante décadas e que morreu no ano passado. O seu lugar no palco é ocupado por Jurim Moreira. Como forma de homenagem, Chico interpreta Grande Hotel, tema composto em parceria com Wilson das Neves.
A volta dos "malandros"
A outra homenagem no concerto vai para Tom Jobim. Chico traz as parcerias Retrato em Branco e Preto e Sabiá, por coincidência (ou talvez não) duas canções de 1968 - o ano da Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar (onde ele participou) e também do terrível Ato Institucional nº 5.
Chico Buarque nunca escondeu as suas posições políticas nem se escusa a discussões sobre a situação do país. Apoiante do PT, o Partido dos Trabalhadores, apoiante de Lula da Silva e depois de Dilma Rousseff, o músico foi um dos assinantes do manifesto "Eleição sem Lula é uma fraude", em dezembro do ano passado. Entretanto, em abril, Buarque manifestou, tal como Gilberto Gil, o seu apoio à pré-candidata do Partido Comunista do Brasil, Manuela d"Ávila, à presidência: " É legítimo e saudável que diferentes grupos de esquerda disputem as eleições presidenciais deste ano. Isso propicia o aparecimento de novas lideranças", disse o músico num vídeo de campanha, sublinhando as qualidades da candidata, entre as quais a coragem, "como se vê na luta pela liberdade de Lula". E conclui: "Aí está um sinal de que as esquerdas devem-se unir no essencial, que é o combate à injustiça e a defesa da democracia".
Também em março, depois do assassinato da vereadora Marielle Franco, Chico Buarque juntou-se à multidão que desfilou nas ruas do Rio de Janeiro para prestar a sua homenagem e marcar uma posição: contra a violência na cidade, mas sobretudo contra a situação política do Brasil.
Num espetáculo que começa com o apelo "deixem passar o povo", talvez se esperasse uma palavra mais dura sobre estes assuntos, mas Chico Buarque não traz as suas preocupações para o palco. Pelo menos não de forma aberta. E essa é mais uma das qualidades dele. "A mensagem é muito clara e humanista", explica a cantora Carminho. "A atitude não é de confronto, não tem de ser. Mas é uma atitude de quem tem uma palavra a dizer sobre aquilo que se passa à volta dele, não só no seu país como no mundo." E não há de ser por acaso que Chico Buarque traz nas suas Caravanas a Homenagem ao Malandro (1977) e A Volta do Malandro (1985) - numa referência aos malandros que por aí andam, "caminhando na ponta dos pés" mas que na verdade são "o barão da ralé".
No final, há de haver quem peça algum dos clássicos, como Apesar de Você ou Meu Amor. Com mais de 40 anos de carreira, torna-se impossível apresentar ao vivo todos êxitos e todos os temas incontornáveis. Chico fará como sempre. Agradecerá com um sorriso nos lábios. E sairá a cantar "Vou na estrada há muitos anos/ Sou um artista brasileiro".
COMO VAI SER?
A banda
Com Chico Buarque no palco estão o maestro e arranjador Luiz Cláudio Ramos (violão), João Rebouças (piano), Bia Paes Leme (teclados), Chico Batera (percussão), Jorge Helder (contrabaixo), Marcelo Bernardes (sopros) e Jurim Moreira (bateria).
O alinhamento
1 - Minha Embaixada Chegou
2 - Mambembe
3 - Partido Alto
4 - Iolanda
5 - Casualmente
6 - A Moça do Sonho
7 - Retrato em Branco e Preto
8 - Desaforos
9 - Injuriado
10 - Dueto
11 - A Volta do Malandro
12 - Homenagem ao Malandro
13 - Palavra de Mulher
14 - As Vitrines
15 - Jogo de Bola
16 - Massarandupió
17 - Outros Sonhos
18 - Blues pra Bia
19 - A História de Lily Braun
20 - A Bela e a Fera
21 - Todo o Sentimento
22 - Tua Cantiga
23 - Sabiá
24 - Grande Hotel
25 - Gota d"Água
26 - As Caravanas
27 - Estação Derradeira /Minha Embaixada Chegou
Encore
28 - Geni e o Zepelin
29 - Futuros Amantes
Possível encore 2
30 - Paratodos
Os concertos
Coliseu do Porto, amanhã e domingo, 21.30
Coliseu de Lisboa, dias 7, 8, 8 e 10. 21.30
Bilhetes esgotados