O engenheiro do açúcar que pôs as Furnas no séc. XX

O hotel e o casino das Furnas têm a marca de Manuel António de Vasconcelos. Foi um arquiteto autodidata que projetou a primeira grande operação do turismo nos Açores nos anos 1930.
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Hotel Terra Nostra acaba de receber mais um prémio de turismo, desta vez pelo guia Condé Nast. Poucos saberão, no entanto, que o desenho daquele edifício, construído nos anos 30, saiu do génio de um homem que não era arquiteto. Cristina Cordeiro não sabia quando foi fazer reportagem no hotel e casino Terra Nostra, nas Furnas, em São Miguel, nos Açores. Aquela arquitetura art déco impunha-se e a jornalista quis saber mais. Durante um ano reuniu documentos, ouviu testemunhos, leu jornais da época e, depois, escreveu um livro. Sai agora da sombra Manuel António de Vasconcelos, Pioneiro da Arquitetura Modernista nos Açores: um engenheiro químico especializado em açúcar que se fez arquiteto por mão própria.

"Foi uma descoberta enorme", diz Cristina Cordeiro, 56 anos. Tem uma voz de menina e parece que se espanta em permanência a cada frase, à conversa com o DN. "Foi fascinante porque ele não estava na lista dos arquitetos do seu tempo, porque ele era um engenheiro químico especializado em beterraba açucareira. Foi um espanto e na altura pensei que ia ficar por ali. Mas li tudo o que havia sobre ele, que não era muito." Percebeu que este homem construiu uma obra arquitetónica pioneira do modernismo no arquipélago dos Açores "que ninguém conhece porque não passou pela aca- demia e não foi considerado durante muitos anos um arquiteto".

A filha do engenheiro-arquiteto, Ana Maria, deu acesso aos "organizadinhos" álbuns de família e aos caderninhos onde o pai apontava tudo. O livro agora editado oferece--nos o percurso deste homem, cruzando-o com os acontecimentos que marcavam Portugal e o mundo, numa cronologia que corre paralela nas páginas. E junta longas entrevistas a vários arquitetos, um depoimento da filha Ana Maria e um ensaio. Várias vozes estão por detrás da capa do livro em que este cosmopolita Manuel António de Vasconcelos surge em Londres, de gabardine e chapéu, qual Dick Tracy dos Açores - como disse um dia a filha de Cristina à mãe. Ainda assim há uma "face obscura da Lua" nesta história (e a jornalista continua à procura de informação).

Manuel António de Vasconcelos nasceu no seio de uma família abastada dos Açores, em 1907. Era neto do fundador do jornal Açoriano Oriental, o pai era o diretor da Fábrica de Açúcar de Santa Clara, que produzia açúcar a partir de beterraba - o que permitia, em período de instabilidade política entre guerras, abastecer o arquipélago. Tinha talento para as artes mas a família já lhe tinha traçado o destino de suceder ao pai (era o segundo de quatro filhos). Vai para a Bélgica estudar Engenharia Química e especializa-se em engenharia do açúcar. A seguir passa um ano em Paris a fazer uma formação em artes. Cristina não sabe exatamente o que sucedeu neste período em que bebeu influências europeias e em que terá privado com arquitetos da época. Certo é que quando regressa a São Miguel vai trabalhar para a fábrica da família e, um ano depois, o grupo Terra Nostra coloca nas suas mãos os projetos do hotel, do casino, do bureau de Turismo.

"Como é que ele consegue convencer o Grupo Terra Nostra de que ele é capaz de fazer aquilo que acabou por fazer, para mim é um mistério", diz Cristina Cordeiro. "Nós sabemos que os sócios do Grupo Terra Nostra e da fábrica de açúcar eram comuns mas como é que eles sabem que ele era capaz de fazer aquele projeto enorme para os Açores dos anos 30? Há muito mistério envolvido nisso." Manuel António de Vasconcelos não era arquiteto mas passa "do design de máquinas para o desenho de arquitetura com um enorme grau de certeza", acentua.

Fez depois outros projetos, também residenciais, a maior parte em São Miguel. Trabalhou em design gráfico. Uma obra breve, de 15/20 anos, que produzia em paralelo com a atividade açucareira, mas que marcou uma mudança de estilo na arquitetura - veja-se a flagrante Barbearia Gil, no centro de Ponta Delgada, remodelação do rés-do--chão de um solar oitocentista com uma linguagem moderna (hoje uma sombra de si própria).

A sua biógrafa não hesita em apontar o casino e o hotel como a obra mais marcante: "É a obra que funciona como o pontapé no estômago, é a obra que, como dizia um dos arquitetos neste livro, coloca as Furnas no século XX."

Manuel António de Vasconcelos, Pioneiro da Arquitectura Modernista
Cristina Cordeiro
Instituto Cultural de Ponta Delgada
156 páginas
PVP: 32,50euro
Apresentação no dia 24 às 18.00
no Hotel Açores em Lisboa

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