O edifício 'flutuante' que os Aires Mateus criaram para os artistas em França

Noventa arquitetos concorreram, Manuel e Francisco venceram. A casa serve a arte contemporânea, mas não é um museu. Abre hoje ao público.

Quando a noite cai, o cúbico edifício dos Aires Mateus fica outro. Flutua. Uma ilusão conseguida graças à galeria de vidro que circunda este corpo maciço, em pedra, que é o Centro de Criação Contemporânea Olivier Debré, em Tours, o primeiro edifício público dos Aires Mateus, em França. Abre hoje ao público, cinco anos depois dos arquitetos portugueses terem vencido o concurso internacional de arquitetura para conceber o novo CCC OD, numa cidade de 100 mil habitantes e 25 mil estudantes, junto ao Loire.

A primeira coisa a saber sobre esta casa é que "não é um museu", frisa o seu diretor-geral, Alain Julien-LeFerrière, na visita guiada aos jornalistas, na quinta-feira. Aqui produzem-se exposições temporárias de artistas vivos e investiga-se a obra do abstracionista francês que lhe dá nome, Olivier Debré (1920-1999), a partir de um pequeno espólio -- cinco pinturas, 150 desenhos e documentação. É o único acervo que possui. E estas foram as premissas de Manuel (n. 1963) e Francisco (n. 1964), quando trabalharam o programa.

"Já existia o Centro de Criação Cultural [desde 1985] e juntando aqui as duas coisas [o CCC e a obra de Debré], Tours viu uma oportunidade de se afirmar à semelhança de outras cidades francesas", conta Francisco Aires Mateus, no início da semana, ao telefone. O irmão estava a caminho de Tournai, na Bélgica, onde os dois arquitetos de Lisboa assinam a faculdade de arquitetura.

A oportunidade de que fala Aires Mateus é a que se pressente quando se está no Jardim François I, ainda por concluir, morada oficial do CCC OD. É a renovação urbanística, detalhada nos cartazes informativos que estão afixados na área, justificando os tapumes. Espera-se o início da construção de dois hotéis.

O edifício dos arquitetos portugueses é o primeiro desse plano a ficar concluído. Fica entre um palácio da Renascença e a Rue Nationale, parte da estrada nacional n.º10, Bordéus-Paris, engolida pela vida comercial da cidade, hoje transitável apenas a pé ou no elétrico com assinatura de outro artista contemporâneo, Daniel Buren. Quando as obras estiverem concluídas há de criar-se uma leitura limpa para a igreja romana do outro lado da rua.

O CCC OD projetado pelos Aires Mateus são dois corpos. O primeiro já aqui estava. Era a antiga Escola de Belas Artes de Tours, trasladada para a antiga tipografia Mame, feita universidade por Bernard Zehrfuss, Jean Prouvé e Edgard Pillet.

O velho edifício, inaugurado nos anos 60, foi o último edifício de um plano de reconstrução de Jacques Boille para esta zona, destruída por um incêndio de grandes dimensões em 1940, consequência de bombardeamentos na II Guerra Mundial.

"Esvaziámos o interior e construímos um triplo pé direito com a dimensão da fachada, um espaço de grande altura, para peças que precisem de grande volume de ar". O edifício está sempre iluminado à noite. "Comunica com a cidade", refere Francisco Aires Mateus. As suas palavras sobre o projeto para a antiga Escola de Belas Artes materializam-se perante a instalação artística do norueguês Per Barclay (Oslo, 1955), que inaugura o edifício. Oil Room é um recipiente de cinco centímetros de altura, que ocupa, à vista desarmada, 80% de La Nef (a nave), como foi batizado este espaço de 300 metros quadrados. Apenas cinco pessoas podem entrar de cada vez. Nessa superfície refletem-se os 11 metros de altura do edifício. Esta é uma das poucas ocasiões em que o artista mostra as instalações que servem de ponto de partida das suas fotografias. Ficará seis meses. "Também nunca esteve tanto tempo", diz.

"Um corpo é vertical, o outro é horizontal", nota Noelie Thibault, guia do centro de criação contemporânea. Estamos ainda no exterior, observando o casamento de materiais. O antigo edifício parece pedra (é uma mistura de cimento), o novo é pedra de verdade - tercé, chamam-lhe os franceses - extraída numa pedreira próxima de Tours. "É claramente um edifício dali", diz Francisco Aires Mateus, elogiando "a pedra muito bonita, absorvente". Esse bege que escurece com a chuva é o mesmo que se vê na fachada limpa da catedral, mas mais resistente.

Saltam à vista os paralelepípedos das fachadas, em diferentes dimensões, as janelas "como que escavadas" e as suas linhas direitas, de que Olivier Debré, estudante de arquitetura e antigo aluno de Le Corbusier, não gostava. "Dizia que eram uma expressão de violência", conta Alain Julien-Laferièrre. Talvez o pintor não gostasse do edifício, admite. A família não gostou, conta. Mas esse aspeto nunca travou a escolha dos Aires Mateus, também autores da sede da EDP em Lisboa, nem uma obra que já tinha conhecido uma proposta de Daniel Libeskind, o arquiteto responsável pelo Museu do Ground Zero, em Nova Iorque.

O projeto dos Aires Mateus foi um entre 92 submetidos a concurso em 2012. Houve menções honrosas para as propostas dos autores do Museu de Marraquexe, o atelier espanhol Nieto Sobejano, e dos autores da extensão da coleção Lambert em Avignon, os franceses Berger e Berger.

A obra, concluída em outubro de 2016, chega à inauguração com uma medalha: foi um dos 40 finalistas do prémio de arquitetura europeia Mies van der Rohe.

Placas recém-colocadas nas indicações da cidade apontam o caminho para o CCC OD e pelas palavras de Francisco Aires Mateus entramos no interior do novo corpo. Antigo e novo unem-se numa zona de bilheteira, café, livraria e área de serviço educativo. No piso térreo há uma galeria negra (black box), "para peças mais experimentais, fotografia, vídeo, performance". Ao seu redor, a galeria de vidro que cria essa ilusão de flutuação. E é espaço expositivo, assim os artistas o entendam como entendeu o artista norueguês Ignas Krunglevicius, que aqui instalou a sua obra de balões de ar quente que se assemelham a corpos humanos. O primeiro andar do CCC OD é o lugar da galeria branca de duplo pé direito, que agora recebe até 17 de setembro a exposição Viagem à Noruega, com obras de Olivier Debré.

Portugal, entre França e Noruega

O pintor manteve sempre uma ligação com a região do Loire, como provam a tela de nove metros de largo por quatro de altura que ocupa lugar de destaque na exposição temporária dedicada ao pintor. Foi pintada no seu atelier, com vista para o rio Loire, a 20 quilómetros de Tours, e é a única que sai fora de tom em relação ao tema da exposição. As demais, 41, foram executadas a partir de 1971, quando o artista começa a visitar regularmente este país escandinavo.

Os porquês de tantas referências ao país escandinavo explica-os Marine Rochard, curadora da atual exposição e responsável pelo centro de investigação da obra do pintor: "O artista expõe pela primeira vez em Oslo, em 1968, regressa em 1970, e em 1971 faz a sua primeira viagem pictural". Isto é, para pintar.

É preciso dizer que este é um artista do gesto: "Não quer pintar a paisagem, mas representar as emoções que a natureza lhe dá". Pinta no local, com neve, se for o caso, nos fiordes... "Há quadros com pedaços de erva ou areia, mostrando que não havia tanto cuidado", diz, perante as fotografias do artista na paisagem inóspita norueguesa com os seus pincéis e tintas.

As telas que aqui se conservam por doação da família, resultam de uma encomenda do próprio CCC. Debré é um dos 300 artistas que desde 1985 criou na cidade. Foram criadas para anterior localização, um antigo parque de estacionamento atrás da catedral.

Debré produziu seis telas, quatro foram mostradas, uma foi comprada por um banco de investimento do Luxemburgo (é a que está agora em exposição) e outra ficou com o artista. Nunca foram mostradas em conjunto. "É preciso voltar", diz, sorriso divertido, o diretor. "Não podemos mostrar já tudo", ri-se. "Dava um ar de fim, começar assim", justifica, perante as perguntas. Ao parco conjunto de telas juntou-se um conjunto de 150 desenhos doados pela família, que tão-pouco podem ser vistos para já.

A maioria das telas vem de instituições públicas e coleções privadas norueguesas, e a exposição é uma parceria com a galeria Haaken e o museu de arte contemporânea Alstrup Fearneley, um museu que nasce da coleção do seu fundador, em cuja propriedade Debré pintou várias obras.

O diretor garante que o Centro de Criação Contemporânea e a obra de Olivier Debré nem sempre estarão em diálogo. "Não forçosamente". Desta vez, há um diálogo a partir da geografia, que motivou a presença da rainha Sonja da Noruega, na inauguração, ontem, ao lado do presidente François Hollande, e dos arquitetos portugueses, trazendo para o centro de França, o interior da Noruega.

A grande encomenda do centro de criação é Innland que pretende ir ao interior de um país que quase não tem mais do que costa, "mas é também o interior de cada um", como refere a curadora e artista Thora Dolven Balke. "Não queria fazer uma exposição apenas com artistas que partilham uma nacionalidade, mas que lhe interessava ver "que condições estavam criadas na Noruega para a produção artística".

O resultado é um conjunto de obras de 11 artistas, entre eles um de origem libanesa e uma lituana, que trabalham em Oslo, unidos pela ideia de partilha. Thora Dolven Balke, artista, desenvolve ativada como curadora, produtora e galerista (fundou a Rekord, à margem do trabalho institucional. E, como havia previsto, Francisco Aires Mateus, na galeria negra podem usar-se suportes tão distintos quanto o vídeo e a escultura, a instalação ou a pintura.

A saber:

Centro de Criação Contemporânea

Jardim François I, Tours

Olivier Debré: Viagem à Noruega, até 17 de setembro.

Oil Room, de Per Barclay, até 3 de setembro.

Innland, exposição coletiva, até 11 de junho

Bilhete: 6 euros (normal), 3 euros (desempregados e estudantes), 9 euros (visitas guiadas), gratuito até aos 18 anos

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