Manuel Alegre: "Novos poetas fazem tábua rasa da poesia portuguesa"

O poeta Manuel Alegre lança hoje Uma Outra Memória, escritos de várias décadas. Quanto à nova poesia, critica os que apagam a tradição da nossa poesia.

Entre a reedição das obras poéticas cinquentenárias como Praça da Canção (em 2015) e O Canto e As Armas (em 2017), Manuel Alegre acaba de publicar uma coletânea de textos dispersos e inéditos em prosa, que intitulou Uma Outra Memória - A Escrita, Portugal e os Camaradas do Sonhos. Um volume de 263 páginas em que regista a convivência com protagonistas da história política e da literatura, com pormenores nunca revelados - caso de Álvaro Cunhal - ou juízos sobre a obra - caso de Herberto Helder. Entretanto, foi-lhe anunciada a atribuição de dois dos maiores prémios nacionais na área da literatura, o de Consagração de Carreira, da Sociedade Portuguesa de Autores, e o de Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores Portugueses.

Em entrevista, no dia em que Uma Outra Memória é apresentado oficialmente em Lisboa, e antecipando a presença amanhã no Festival Literário Fronteira, em Castelo Branco, o poeta fala deste livro. Quanto ao conteúdo, explica que alguns dos textos foram escritos sob impulso, o de Sottomayor Cardia, por exemplo; outros para registo político, dois discursos parlamentares. "É uma seleção que também tem em conta a coerência de vida e uma visão poética de Portugal", diz. Adianta que está a escrever um conjunto de poemas em torno da figura do Prior do Crato.

Publica estes textos como os escreveu ou corrigiu para evitar a espuma dos dias?

Fiz uma revisão por razões formais e literárias, porque num ou noutro texto havia referências a acontecimentos que perderam o seu caráter mais perene.

Pode-se refazer a sua vida nele?

A minha e a de muitos outros, como a de escritores de quem fui mais amigo ou tive maior ligação, bem como dos camaradas do PS que desapareceram.

O título tem a palavra camaradas. Ainda se usa esta designação?

É das palavras mais belas do português. Falo de "camaradas dos sonhos", porque viveram o sonho de um certo Portugal e de uma certa ideia da literatura e da poesia."

O que se destaca é a componente política da sua vida?

Que é inseparável da poética! O que em mim parece ser uma divisão é a minha unidade. Noutras circunstâncias teria sido escritor, mas como nasci numa ditadura, apareceu a guerra colonial que alterou a vida de muitos e também a minha escrita. Se não tivesse vivido o que vivi, não teria escrito o que escrevi. Reconheço que posso ter sido prejudicado na poesia por causa da intervenção e na política por ser ser poeta, mas hoje essa aparente cisão é a minha unidade - porque escrita e vida são inseparáveis. Não me arrependo do impacto dos meus primeiros dois livros, que por circularem clandestinamente me trouxeram alguns problemas.

Esse sucesso obrigou a subir a fasquia?

Portugal é um país que tem muitas invejas e alguns dos meus confrades achavam que era fruto da época. Pode-se dizer que fiquei um pouco prisioneiro desses dois livros, embora haja uma linha contínua entre Praça e Senhora das Tempestades, bem como numa estrutura rítmica e a toada poética.

Foi como uma segunda censura?

Da parte dos leitores não. Mesmo que algumas pessoas entendam que os poetas não devem ser lidos, acho que a poesia é para ser partilhada e quem edita quer ser lido. Tive outras formas de censura, porque há muitas seitas na literatura. Estes prémios são um estímulo.

Têm aparecido novos poetas, em idade e género. Como os vê?

Não os conheço todos, mas creio que para haver grande poesia é preciso conhecer a que está para trás - a dos Cancioneiros, Camões, Cesário Sá-Carneiro, Pessoa - e é preciso ter um sentido da língua. Não acredito na poesia em que inexiste um sentido e alguma dessa nova poesia tem falta de tradição. Claro que a língua deve ser transformada; claro que sempre houve choques entre gerações, mas os novos poetas fazem tábua rasa de toda a tradição da poesia portuguesa. O que vejo é uma poesia do quotidiano, da taberna... Para se ser poeta não é preciso beber - Pessoa bebia uns copos mas não foi por isso que foi um enormíssimo poeta. Sou contra as diretivas literárias e a ditadura do gosto. Ainda por cima, alguns jornais de referência fomentam o desgosto pela literatura ao omitir livros e ao dar a outros as estrelas máximas. apesar de ninguém os ler ou gostar.

Há uma moda na poesia?

Sempre houve modas, mas estas coisas vão todas ao sítio porque não se impõe poesia ou poetas, como também não se apagam escritores ou poetas.

Considera, então, que os novos poetas estão a fazer tábua rasa?

Nós também fizemos isso, escrevemos em mangas de camisa; a geração da Presença fê-lo, o Torga, o Régio, e antes o Orpheu.

Este é um livro de intervenção?

Todos os grandes poetas do século XX tiveram alguma intervenção. O Pessoa, a Sophia. Aliás, desde a formação de Portugal com D. Dinis, depois Sá de Miranda. Os Lusíadas é o poema mais político da nossa literatura! Não há poetas na torre de marfim, fora da história e da vida.

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