Onze contos reunidos sob o título Burgueses Somos Nós Todos ou ainda Menos fazem o novo livro de Mário Carvalho, com uma dedicatória em que assume que "não posso fazer dum texto o que quiser" porque tem em conta o leitor. Atitude rara nos escritores e que defende assim: "A escrita implica um ato de comunicação; escrevo para alguém, mesmo que não saiba exatamente para quem, e tenho a consciência de que este trabalho implica sempre uma parceria com o outro - que também faz o livro." Se se escolher o tópico da Lisboa de Eça de Queirós, diz, a conversa terá "sempre que ver com a vivência pessoal e cultural que o leitor transporta para dentro do texto", daí que o autor esteja limitado por convenções: "A primeira é a língua. Até poderia escrever numa língua inventada, mas seria uma gracinha e não sou muito dado a esse tipo de coisas." A invenção fica para a literatura, assegura, mesmo que em alguns destes contos utilize parte da sua vida, como na descrição pormenorizada de um cemitério. É real?, pergunta-se: "Deve assemelhar-se ao do Alto de São João e à lembrança que tenho de um choque de brancura e de silêncio que existe lá, mas o leitor verá outro cemitério." Ou os quintais de nespereiras que se veem da janela onde acontece a entrevista..Já teve curiosidade no perfil do leitor que compra os seus livros?.Não é coisa que ande a indagar, mas ao fim destes anos todos estou convencido de que são bons leitores. Citando o Óscar Lopes, escrevo para um leitor capaz de ser autor do livro, de acompanhar uma certa cadência e tratamento da língua e aproveitar algo com isso. Creio que não chego facilmente ao leitor menos exigente e com pouco contacto com a literatura portuguesa e quem leia menos os clássicos talvez entre com mais dificuldade nos meus livros..Principalmente quando usa palavras que exigem o dicionário?.Não as uso para exibir vocabulário! Às vezes demoro dias a descobrir a palavra que o texto pede e, como a nossa língua é muito rica, não me limito aos 22 mil vocábulos mais usados - gosto de a aproveitar. Prezo muito os escritores que têm trabalhado a língua, como o Aquilino [Ribeiro] ou a Maria Velho da Costa, que utilizam esta matéria-prima de uma maneira excecional..No caso de Aquilino, os leitores não desconhecem a maioria das palavras que o escritor utiliza?.Pois... é necessário muito gosto pela língua e pela literatura para ler um autor como Aquilino, mas é imprescindível fazê-lo porque é, seguramente, o grande escritor do século XX devido à plasticidade, à riqueza da língua e à capacidade de construção. Tal como um músico deve conhecer Mozart e Bach, os grandes autores devem ser conhecidos..Acha que os seus colegas da nova geração o conhecem?.Ainda vão a tempo....Aquilino é, então, o maior escritor do nosso século XX?.Não tenho dúvidas, e o século XX é o século de ouro da literatura portuguesa. Existem autores enormes: José Cardoso Pires, Saramago, Agustina, mas o Aquilino sobreleva tudo. É um grande monumento, culto, vivido e trabalhador incansável..Quando começou a escrever estava rodeado de grandes nomes. Agora, não restam assim tantos....É a sua opinião....O que refuta?.Não refuto que estava rodeado de grandes nomes e que talvez me seja difícil neste momento evocar alguém que tenha essa dimensão, mas também é preciso dar tempo ao tempo. Não teremos neste momento em relação a alguns autores a distância suficiente para os avaliar, além de que na altura eu tinha outra idade e capacidade de admiração, hoje tenho má boca e é muito provável que textos que me fascinavam hoje me sejam indiferentes..Mas quando lança o primeiro livro estava ou não mais bem rodeado?.Eles eram mais velhos, mas dava muito prazer estar com o Cardoso Pires, que era um homem divertido e peremptório nas opiniões, mesmo que nem sempre corretas. Havia na altura uma situação que desapareceu, ou sou eu que estou alheado: uma vida literária em que as pessoas se encontravam, conversavam, liam as coisas umas das outras e com relacionamentos pessoais. Isso desapareceu com a minha geração literária, vejo-os de raro em raro, até porque acabou a época de muitas viagens que permitiam encontros no estrangeiro e ter boas memórias..Os festivais literários não replicam esses encontros de antigamente?.Recebo muitos convites, mas já passámos da fase convivial e dissemos tudo o que havia a dizer. Não há necessidade de estar a repetir o que é consabido. E nunca fui um amante de viagens, apesar de naquela altura ter mais disponibilidade para fazer as malas e gramar a comida italiana, porque era a mais barata. Agora, gosto mais da minha rotina..Este livro segue-se a outro de contos e tudo começou com os Contos da Sétima Esfera. É o fecho de um ciclo ou voltar ao princípio?.Ando por várias pistas e tenho feito de tudo: escrita para cinema, teatro, romances, novelas e contos. Hesitaria chamar contos ao penúltimo livro, Ronda das Mil Belas em Frol . São mais casos rápidos, como os Casos do Beco das Sardinheiras [1982], de um homem que tem contactos com umas duas dezenas de mulheres e dá o seu ponto de vista..Um ponto de vista que está em contraciclo com o das redes sociais. Não receia uma reação contra um olhar tão masculino?.Porque duvidariam de que o meu olhar seja o masculino e com todas as implicações que isso tem? Sempre foi tão assumido que as mulheres perceberam muito bem e não houve posições contra. Ser-me-ia mais difícil escrever sob o ponto de vista feminino. Talvez lá chegue..Neste novo livro, as mulheres têm menos papel. Porquê?.Não estou de acordo que tenham um papel menor e logo no primeiro conto há uma armadilha montada pelas mulheres. São os dois lados..Os homens são muito enganados!.É para isso que eles lá estão. As mulheres são mais atentas e argutas..Em ambos o sexo está muito mais presente do que nos seus trabalhos anteriores. O que se passa?.Mais no anterior do que neste, que não é tão dirigido para o sexo. Faz parte da vida e como estes são burgueses não há razão para fugir a esse relacionamento essencial e estruturante entre homens e mulheres. Escrever sobre sexo não é fácil, facilmente se cai na obscenidade ou na vulgaridade ao falar do corpo..A única ausência de relações nestes contos é entre o mesmo sexo....É minoritário e não me sinto obrigado a falar disso. Um dia destes..Sendo um escritor com presença nas redes sociais não sente pressão em certos temas nos livros?.Talvez exista alguma pressão, algum fanatismo, algum excesso de militância e um abuso dos slogans. Estou -me nas tintas, porque não funciono com bandeiras na observação da vida. Tenho a noção da complexidade das coisas e do que não sei e muita dificuldade em aderir a prédicas. De forma alguma me deixo arrastar por modas nem ando a escrever o que os outros escrevem desde o primeiro livro. Nem sequer me apresso a ler os autores que são recomendados. Não é arrogância, é uma maneira de estar..Na sua dedicatória também não esquece a inexistência da crítica....Não estamos muito bem servidos neste momento de crítica literária, mas essa é uma opinião geral pois há pouca menção de livros e pouco acompanhamento. Até parece que há a preocupação em dar a conhecer autores estrangeiros em vez dos portugueses. O meu Cronovelemas vendeu bastante bem e não teve praticamente um registo nos jornais. Senti-me ocultado. Nem se percebe quais são os critérios de escolha deste ou daquele autor nas resenhas. O que acontece agora é que há expressão dos livros nas redes sociais e as pessoas trocam impressões sobre eles. Aquele antigo hábito de falar sobre literatura e conversar sobre livros está a transferir-se para as redes sociais..É um grande utilizador?.De vez em quando faço grandes intervalos e não toco no Facebook, a não ser uma ou outra espreitadela. Ultimamente, uso-o porque é uma forma interessante de contactar leitores e receber as suas opiniões..Considera que as redes sociais substituem-se aos jornais?.Há uma tendência para isso e os jornais começam a perder relevância, até recorrem às redes sociais com todos os inconvenientes que traz na deficiência de informação. Considero que os livros são mais mencionados e comentados nas redes sociais do que nos jornais..Será preciso pertencer a um lóbi para ter críticas?.Creio que não, é muito fácil inventar razões e dizer que é o grupinho. Isso é demasiado conspiratório e não justifica o fracasso..Voltemos a este livro de contos. Enquanto escritor revê-se nele?.Sem dúvida, porque escrevi o que queria. Felizmente, e já passei por várias editoras, nunca houve por parte de qualquer uma a menor intervenção e sempre senti liberdade no que escrevo. Este livro é o que me ocorreu e correspondeu a um período de um ano e meio na vida..Neste livro ninguém deixa de perguntar o que é autobiográfico?.Já o Jorge Luis Borges dizia que todos os livros são autobiográficos, só que uns começam com "eu nasci em tal sítio e em tal data" e outros "era uma vez um rei que tinha três filhas". Provavelmente, alguma da minha vivência e de amigos e conhecidos aparece refletida nas páginas mas há que fazer a separação de águas entre o autor e o texto..Tem praticado diversos géneros. Como é o confronto com cada novo registo?.Sinto sempre a curiosidade a exercer-se. Como é que funciona? Às vezes há desilusões ou o romance encalha e fica-se por cinco páginas..Algum destes contos foi um romance falhado?.Talvez no conto do cemitério tivesse havido um impulso inicial para o romance que se ficou pelo caminho. Pode ser que ainda aconteça....Burgueses Somos Nós Todos ou Ainda Menos Mário de Carvalho Porto Editora 113 páginas PVP: 16,60 euros