Manuel Alegre: O Canto e as Armas reeditado 50 anos depois
Chega amanhã às livrarias uma das obras mais marcantes do poeta Manuel Alegre, O Canto e as Armas, 50 anos após a sua edição. Um volume cujos poemas foram musicados e cantados, entre outros, por Adriano Correia de Oliveira, tendo dado esse título ao próprio disco gravado em 1969. Segundo a editora recorda, O Canto e as Armas foi "o livro de uma geração mas que se prolongou no tempo enquanto voz de esperança numa pátria livre e de denúncia da opressão política da ditadura salazarista, da guerra colonial, da emigração e do exílio, a que muitos portugueses, como o próprio poeta, foram condenados".
Um conjunto de poemas premonitório, sobre o qual Urbano Tavares Rodrigues disse em tempos representar a "dignidade de Portugal que se levanta em palavras, sem um só inchaço de retórica balofa, antes com uma inventiva verbal constante, como achados em que o próprio fulgor conotativo ateia a emoção".
Esta edição que comemora o cinquentenário da primeira edição contém um prefácio do escritor Mário Cláudio que se antecipa em pré-publicação.
Uma outra incandescência
Por Mário Cláudio
O convívio com um texto no espaço que o justifica, quando não resulta de um privilégio da nossa escolha, poderá corresponder a uma consequência da força das circunstâncias. Calhou-me dialogar com O Canto e as Armas nas bolanhas da Guiné onde cumpria a minha comissão de serviço militar obrigatório, e no verbo «cumprir», e no adjectivo «obrigatório », não pouco se insinuará do animus que terá comparecido à leitura. Não se tratando de uma proposta «neonefelibata», igual às que aliás informavam boa parte da poesia que nesse tempo se ia escrevendo na chamada «Metrópole», o texto de Manuel Alegre engastava o «espírito» no exacto lugar que o segregara, e onde o subscritor destas linhas se encontrava. Eu estava numa guerra, e numa guerra injusta, na qual muitos se envolviam desmotivadamente, como estaria qualquer leitor de Moby Dick a bordo de um baleeiro de Nantucket, e em busca do Leviatã branquíssimo, ou de Guerra e Paz na estepe gelada da Campanha da Rússia, e sob o comando de Napoleão. E quanto ao vocabulário estruturante de toda a obra literária, eis que coincidia ele com o que por então povoava a nossa fala quotidiana, percorrida por «bazucas e morteiros e estilhaços», por «granadas», e por «metralhadoras». Não me recordo de outro livro, a não ser talvez o de Job, eleito em momentos de infortúnio, que se me tenha amassado tão imediatamente no sangue.
Mas O Canto e as Armas assegurar-nos-ia ainda, a muitos, e a mim também, a permanência de um horizonte longínquo, o da terra europeia que nos fora berço, evocando o regaço da Mãe superlativa, por quem clama ao que se diz cada soldado antes de ascender a herói ou, o que valerá o mesmo, ao plano de quem «jaz morto e arrefece». Era a absoluta ruralidade que investia por aquelas páginas, conforme à grande paisagem, natural e humana, que a desertificação não avassalara ainda, e que haveria de enquadrar os anos seguintes. Despertavam de facto por ali criptomnésias de um pequeno paraíso agro-pastoril, «arados» e uma «espiga», ou «uma flor de verde pinho», a pontuar «oitenta e nove mil quilómetros quadrados».
Essa dimensão de um sonho atávico recusava a falsa suavidade, reivindicada por um regime que, reduzindo a fantoches a representação da Grei, falhava na descoberta da alma de um povo jugulado, quando não objecto de sinuosa manipulação. Inscrito na tradição do lirismo bucólico, tingido porém pela mancha do suor, e pelo vestígio das lágrimas, O Canto e as Armas arredava a menor das suspeitas de amenidade, mantendo como pano de fundo um ADN identificante que no momento da sua vinda a lume celebrava já o que «temos aqui à mão / a terra da aventura».
No diedro formado por violência e paz jogar-se-ão porventura os lances maiores, e os mais inesquecíveis, deste empreendimento que exorbita do mero alfobre das letras. E os poemas de O Canto e as Armas ficarão na literatura portuguesa, menos como testemunhos de uma fase, ou como desabafos privados, do que como dimensão da epopeia individual, mas paradigmática, a que um certo pensamento do século xx nos conferiu inalienável direito. Contemplando uma dialéctica específica, a que opõe a vocação da eternidade, contida no «canto», ao ímpeto de aniquilamento, ínsito nas «armas», o discurso reabilita a sombra da tragédia humana, tocada por alternativos modelos de ressurreição. E mesmo esquecendo os conflitos que o desencadearam, um entrecho assim sintetiza o duelo entre o fatum do «Cadáver adiado que procria» e a incessante busca da transcendência explicativa. Cruzado por missões e exílios, desfalecimentos ocasionais, e incoercíveis pulsões de libertação, O Canto e as Armas opera uma biografia colectiva, nascida para se ver amordaçada, mas infatigável no esforço da descoberta, e do anúncio, da sua própria formulação. Por isso é que, sendo embora o amor nas suas declinações infinitas o que neste verbo encarnado continua a homenagear-se, jamais perdendo a consciência de «contínuas despedidas», tenderá ele sempre para esse reverso da medalha em que se converte em «Amor rebelde amor guerrilha amor Guevara», e em que o presente se transmuda em futuro.
Do mesmo passo, e ao efectuar a metamorfose do conceito de «inimigo», o Canto e as Armas circunscreve tal condição a um repressor endógeno, o que postula um alargamento da ideia de «pátria», desligando-a de toda a monumentalidade marmórea, e apoiando-a num território sem fronteiras que não sejam as riscadas pela cadência de uma cultura de afectos. A esta luz se relerá por conseguinte a universalidade histórica, presidida pela convicção de que «Alcácer Quibir é estar aqui», e de que «ir morrer / além do mar» equivalerá a apagar-se «por coisa nenhuma». Quanto à verificação sumariante de que «já em Portugal estrangeiros somos», ei-la que conjuga o pesadelo kafkiano, ilustrado pelo ser que de si mesmo se desencontra, com a irrealidade de Camus, vivendo num corpo em demanda dos seus contornos.
Breviário de uma geração, O Canto e as Armas articula paciente, mas indesistivelmente, aquilo que o autor segreda ao ouvido de uma mítica destinatária, a quem interpela como «Penélope que bordas de saudade», e no «amor que me prende», e que «é liberdade», «palavra clandestina em Portugal / que se escreve com todas as harpas do vento.» Contrapondo a incandescência das «armas» a uma outra, e porventura utópica, a do «canto», esta voz remete-nos a um destino hegemónico que consagra os artefactos da alta poesia, os quais, publicados e apreendidos pela censura, mas circulando em cópias manuscritas e dactilografadas, e novamente apreendidas, e novamente publicadas, duram como se verifica cinco décadas mais tarde. Eis pois o que erige um poeta, e o que o assinala, para além de quanto ele for, e de quanto quiser assinalar. Calem-se definitivamente, ou quase, as armas multímodas, e até as que se guardarem no avesso do gabão para surgirem em solertes assaltos. Só nesse instante o canto, o de Manuel Alegre, e o nosso através dele, poderá escutar-se em perfeita serenidade."