O romance danado de Valter Hugo Mãe
A leitura de A Desumanização mostra que o livro não cabe dentro do escritor em vários momentos. Foi isso que aconteceu?
É verdade que o livro me ultrapassa largamente, mas tenho sempre essa sensação de ser uma versão muito mais inteligente do que eu poderia ser. Até uma versão de mim, potenciada àquilo que me é impossível e que, por isso, esteja sempre além da expectativa.
Era um livro em que havia muita expectativa dentro do escritor!
Era um livro que queria tanto escrever e do qual esperava pretensiosamente muito depois de anos a sonhar com a Islândia. O desafio era manifestamente grande e foi importante correr o risco.
O cenário é a Islândia sem dúvida, mas há palavras que lembram a sua Caxinas...
Os pescadores... O barco...
É verdade a presença de Caxinas?
Em algumas coisas é mais da técnica de se viver ao pé do mar. É verdade que arranjo sempre maneira de ter um barco e que os meus livros facilmente chegam à praia. Assumiria isso numa expressão que uso a dada altura e que dizemos nas Caxinas: "Fomos à largada do barco." Senti que ao escrever assim, de alguma forma os fiordes islandeses viriam até mais perto de mim.
Chamou-lhe A Desumanização, palavra que só aparece uma vez em todo o livro. Porquê?
A Desumanização porque talvez esteja impressionado com esta maneira de assumir que para se ser gente precisamos de dosear as qualidades humanas. Faz parte da resistência humana o sermos menos gente e aceitarmos mais ou melhor a dimensão animal e a fúria das coisas naquilo que nos leva a falhar. Acho que cresci durante muito tempo na guarda das minha ingenuidades, que provavelmente guardarei sempre, mas tão preparado para a desilusão que os meus livros haveriam de denunciar mais tarde ou mais cedo, daí que A Desumanização seja um pouco isso. Também pela perceção de que o caminho das pessoas se faz dessensibilizando-nos um pouco, até para sermos humanos.