Sete percursos para não turistas conhecerem melhor Lisboa

O historiador e conservador Anísio Franco escolhe sete percursos de uma cidade com muitos recantos a descobrir. Destina-se também a lisboetas que têm a ilusão de que conhecem bem a capital
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Irá um dia cansar-se de Lisboa? "Nunca. Juro, porque a cidade é inesgotável. O Almada [Negreiros] dizia que gostava das pessoas que nunca acabam e Lisboa é uma personagem sem fim." Esta pergunta inicial surge a propósito da publicação de Caminhar por Lisboa na Companhia de Anísio Franco, onde não é por acaso que o historiador de arte e conservador no Museu Nacional de Arte Antiga tem o nome colado ao título em vez da normal assinatura na capa: afinal é um dos grandes conhecedores da capital portuguesa e decidiu registar muita da sua experiência em passeios por Lisboa num volume que inclui sete percursos para descobrir a cidade.

Se não fosse Lisboa, seria por certo Roma, confessa: "Todas as cidades são minhas, esta é onde vivo e conheço mais gente. A seguir é Roma, a capital do império, onde ao virar de uma esquina nos deparamos com uma fonte de Bernini. Não é que falte monumentalidade a Lisboa, não tem é a mesma qualidade. Lá, houve uma encomenda artística que nunca existiu por cá. Um país onde não se acabam os projetos, a maior parte das vezes tão megalómanos que ficam pela metade, obedecendo aos ciclos económicos."

Dá exemplos: "Foi o caso do Centro Cultural de Belém, onde faltam dois núcleos por terminar. O Convento de Mafra é a exceção nacional. O [arquiteto] Raul Lino achou piada a isto e chamou-lhe o desenvolvimento orgânico da arquitetura portuguesa. Para mim, não é virtude mas um abarracamento."

Caminhar por Lisboa tem 176 páginas e é de fácil transporte em passeio, repleto de fotos e mapas, bem como de muitas explicações. Pode ficar-se a saber a razão de ser do leão que está ao lado do marquês de Pombal no topo da estátua na praça com o seu nome; porque o Cais se chama do Sodré; o local onde havia no século XIII a mais antiga feira... Principalmente, dá a conhecer Lisboa como poucos pois Anísio Franco deposita nele a sua longa experiência e conhecimentos da cidade.

Tudo começou aos 11 anos quando o irmão e a prima o deixaram em Belém. Aí, meteu-se num autocarro e regressou a casa: "Essa é a minha primeira memória. Tive um misto de medo e curiosidade porque o mundo abria-se à minha volta. A partir daí nunca mais precisei de ninguém e comecei a percorrer as ruas de Lisboa e a tentar descobrir a cidade. Era tudo de forma aleatória até se tornar mais sistemático numa segunda fase, quando fazia passeios ao domingo com um amigo. Anos depois, estava nos verdadeiros Passeios de Domingo do Centro Nacional de Cultura", relembra.

Ainda tem o primeiro mapa numa gaveta em casa dos pais: "Era muito rudimentar e parecia um harmónio quando se desdobrava. Tinha uma listagem com todos os museus e ia riscando aqueles a que tinha ido." O livro transfere a curiosidade, mostrando nestes percursos muito do que não está nos guias normais: "Alguns lugares que à partida não se visitam!"

Pergunta-se-lhe se alguma vez se cruzou com Eça de Queirós. "Sim", é a resposta imediata: "Tive uma vez a profunda sensação de que tinha entrado num sítio de onde Eça tinha saído há dois segundos - no Palácio de Santa Apolónia." Além de Eça de Queirós, também convive com os que habitaram a cidade: "Os meus amigos até se aborrecem porque estou sempre a dizer: aqui e ali viveu fulano. Para mim, estão todos vivos."

A invasão de turistas que se verifica em Lisboa não o incomoda: "Pelo contrário, fico contente e ainda quero mais. Não gosto é que andem a encarreirá-los para os mesmos percursos porque assim não conhecem a verdadeira cidade. Eu próprio já não reconheço o percurso que vai da Baixa ao Castelo de São Jorge tamanhas são as aberrações."

Não contesta o fim das lojas tradicionais mas exige legislação para defender os interiores e não apenas as fachadas dos prédios: "A mania de esventrar o interior é uma ação criminosa. Quanto ao fim de lojas antigas, deve-se ao desenvolvimento do tecido comercial. Toda a gente chora quando fecham mas não vão lá fazer compras enquanto estão abertas."

Anuncia que admite escrever um segundo livro, com mais sete percursos, mas antes gostaria de ver Caminhar por Lisboa traduzido em inglês: "Até deveria ser em francês, italiano, espanhol e mesmo russo." No entanto, a aposta forte é nos portugueses: "A intenção é mostrar a quem julga que conhece a cidade que ainda tem muito para ver.

Nota constante no livro é a presença de grandes arquitetos: "Adoro Pardal Monteiro, o grande arquiteto do século XX." Não esquece Cassiano Branco: "O maior crime que lhe fizeram foi a monstruosidade no interior do Éden. Portugal sempre foi um país de fachada e aquilo denota a mentalidade profunda em relação ao património."

Uma coisa garante o autor: "Não quis falar de uma cidade que ficou no século XIX, o novo Museu da Eletricidade já está no livro."

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