"Problemas de Género" finalmente em português
João Manuel Oliveira teria uns 23 anos quando leu pela primeira vez Gender Trouble, de Judith Butler, na edição original em inglês. "Mudou a minha vida", diz, sem hesitar. "É uma conceção do género radicalmente diferente, em que uma série de certezas que a investigação tinha até à altura [a primeira edição é de 1990] são postas em causa. Por exemplo, e a mais importante a meu ver: achava-se que o género replicava a lógica do sexo, ou seja, que nós tínhamos género porque éramos, primeiro, sexuados. O que este livro vem dizer é que aquilo que nós achávamos que era um dado da natureza é, afinal, uma construção".
Investigador na área dos estudjos de género ligado ao ISCTE, embora, neste momento, com as malas feitas para ser, durante um semestre, professor convidado da Universidade Federal de Santa Catarina, no Brasil, João Manuel Oliveira assinou o prefácio da edição portuguesa de Problemas de Género : 27 anos depois da sua publicação, um dos textos fundamentais da teoria feminista, dos estudos de género e da teoria queer, está finalmente disponível em português pela mão da Orfeu Negro. O livro será apresentado no âmbito do Queer Lisboa, hoje, às 16.00, na sala 2 do Cinema São Jorge, numa conversa informal em que participam João Manuel de Oliveira, a coreógrafa Vera Mantero e o especialista na obra de Butler, Pablo Pérez Navarro.
O género como performance
Judith Butler é uma investigadora norte-americana, professora na Universidade da Califórnia, em Berkley, atualmente com 61 anos. Embora seja mais conhecida pelos seus trabalhos nos estudos de género, quer da crítica feminista quer da teoria queer, o seu pensamento estende-se à violência política, ao colonialismo e também ao judaísmo. Entre as suas obras mais relevantes encontram-se Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (1990) e Bodies that Matter: On the Discursive Limits of Sex (1993), nas quais ela desafia as noções convencionais de género e desenvolve a sua teoria do género como performatividade.
Ou seja: que o género é algo que se constrói através de uma série de atos de imitação numa procura de conformidade a uma referência. Esta ideia já tinha sido avançada por outros investigadores, que defendem que o género é social enquanto o sexo é natural, pré-dado pela biologia. Porém, Butler vai mais longe. Para ela, o sexo, tal como o género, é produzido pelo discurso e inscrito num conjunto de práticas e significados construídos social e culturalmente. A identidade é permanentemente construída pela linguagem.
"A ideia de que o género é performativo procura mostrar que o que tomamos como uma essência interna do género é fabricada mediante um conjunto sustentado de atos, postulados pela estilização de género do corpo", escreve Judith Butler no prefácio de 1999, incluído na edição portuguesa. Existe neste texto, admite a autora, um "esforço obstinado para desnaturalizar o género", "um forte desejo de contrariar a violência normativa implicada pelas morfologias ideais de sexo, e também de desenraizar os pressupostos disseminados quanto à heterossexualidade natural ou presumível que são moldados pelos discursos comuns ou académicos sobre sexualidade".
Para chegar a estas conclusões, Butler começa por fazer uma leitura crítica de autores como Lévi--Strauss, Jacques Derrida, Jacques Lacan, Julia Kristeva, Sigmund Freud, Luce Irigaray, Monique Wittig e Michel Foucault. Esta leitura crítica é fundamental porque um dos pressupostos de Butler é a impossibilidade de existir fora do discurso. Nós nascemos já dentro de sistemas discursivos e de poder e é a partir deles que nos construímos. É uma liberdade "policiada".
"Usando conceitos aparentemente teóricos, ela está a falar de coisas muito centrais na vida das pessoas", explica João Manuel Oliveira. Ajuda-nos a pensar porque é que as mulheres são subordinadas aos homens nalgumas culturas, porque é que a sexualidade das mulheres é constrangida. A perceber a diferença, as pessoas que não são conformes do ponto de vista de género, porque "quando há algo que põe em causa a norma, isso põe a norma em evidência e questiona-a". E a ver como esta é também uma questão de sobrevivência: "A violência de género existe. Veja-se a estatística de violência sobre as mulheres e sobre transexuais."
Dançar primeiro, pensar depois
"Este livro mudou a linguagem do ativismo e da teoria queer e pôs algumas das nossas certezas, as certezas partilhadas, em jogo. Os livros não mudam o mundo, mas impulsionam processos de mudanças", diz João Manuel Oliveira. "Este, mais do que um livro, é a expressão de um campo cultural." Quando Gender Trouble foi publicado, em 1990, estas questões já estavam a ser pensadas e debatidas "na arte contemporânea, no cinema, na performance, no ativismo. Havia uma necessidade de abrir este espaço, de pensar as dissidências sexuais", diz.
No caso português isso é mais do que evidente, como explica no seu prefácio, a que chamou "Dançar primeiro e pensar depois", parafraseando o título da peça de Vera Mantero, Talvez Ela Pudesse Dançar Primeiro e Pensar depois (1991). "Significa isto que, no nosso país, se dançou primeiro para se pensar depois." Em Portugal, onde os estudos de género chegaram à universidade no final dos anos de 1980, depois de uma história recente de invisibilidade do feminino durante o Estado Novo, foi nos palcos, defende, que artistas como Vera Mantero, Francisco Camacho, Carlota Lagido, Miguel Pereira e João Fiadeiro "levaram a sério uma problematização sobre os corpos".
Depois de Gender Trouble, os estudos de género evoluíram e a sociedade também. A própria Judith Butler continuou os seus estudos nesta área (depois de ter mostrado como é que se constrói o género, em 2004 mostra como se desfaz o género, na obra Undoing Gender). No entanto, João Manuel Oliveira considera que este continua a ser um texto fundamental e que é importante publicá-lo em português: "Os académicos já o leram, mas tenho a expectativa de que isto possa servir para outras gerações." E que, quem sabe, o livro possa mudar a vida de mais pessoas, como mudou a sua. Recorda uma expressão muito bonita de Virginia Woolf: "Um quarto que seja seu." "Este livro deu-nos isso, um espaço. Rompeu uma série de ideias cristalizadas e abriu um espaço que pudéssemos, cada um de nós, habitar."