O livro em que Tintim nasceu finalmente ganhou cores
É preciso subir até ao oitavo andar do 162 da Avenue Louise, em Bruxelas, para descobrir o espaço reservado aos artistas que trabalham as obras de Hergé. O espaço é pequeno. A vista da janela mostra um céu escurecido pelas nuvens. A cidade quase sem cor, a condizer com o livro original.
O criador da chamada linha clara "nunca teve tempo" para iniciar uma versão a cores do seu primeiro trabalho. A justificação é apresentada ao DN pelo diretor artístico dos Estúdios Hergé, Michel Bareau. O coordenador da obra lançada nesta semana garante que o livro procura "o espírito" daquela época, sem nunca "trair as obras coloridas por Hergé".
Tintim no País dos Sovietes é "o primeiro livro [de toda a série] Tintim" e nele é "bem visível que não tem o mesmo traço de Hergé quando chegou ao décimo álbum", nota a diretora do Museu da Banda Desenhada de Bruxelas, Carine Schmitz. Quando iniciou a série de As Aventuras de Tintim, Hergé "tinha apenas 21 anos" e, por essa razão, é "normal que tenha defeitos".
O próprio autor chegou a classificar o seu primeiro trabalho como um "álbum mal desenhado" e não faltam estudiosos para identificar imperfeições numa obra que, porém, consideram "emblemática", como o professor de artes, especialista na obra em Hergé, Philippe Goudin.
Do ponto de vista da narrativa encontram-se falhas como personagens inspiradas em nomes polacos. As bananas que aparecem numa das cenas do livro e um posto de combustível da Shell são elementos introduzidos pelo autor que não existiam na Rússia daquela época. "São essas pequenas imperfeições que lhe dão o charme", nota Carine Schmitz, confessando-se fiel admiradora do trabalho de Hergé, há "muitos [mais] anos" do que os 27 que leva no museu. Leu "toda a obra" e Tintim no País dos Sovietes "ainda em criança".
"Na verdade, em Tintim no País dos Sovietes, o mais interessante é o movimento e a forma como ele faz mexer as personagens, as perseguições de carro, Milu que já tem imensa graça. Francamente é o início de uma grande aventura de Tintim", afirmou ao DN.
Uma aventura em que Tintim é enviado de Bruxelas em reportagem para Moscovo. Durante a viagem de comboio, enquanto atravessava a Alemanha, sobrevive a um atentado, orquestrado por agentes secretos russos. "Neste livro, Tintim escapa a 22 tentativas de assassínio", comenta o diretor artístico dos Estúdios Hergé, considerando que é um livro com muita atualidade. "Anna Politkovskaya", a jornalista russa assassinada em Moscovo em 2006, "poderia ser o Tintim", nota. Porém, este é um ponto de vista pouco consensual. A diretora do Museu da BD entende que "Tintim no País dos Sovietes já não tem atualidade" e é um livro confinado na época em que foi escrito.
Hergé escreveu a história sem nunca ter estado na Rússia, sob as orientações da direção do jornal católico, conservador, anticomunista Le Vingtième Siècle. Baseou-se no livro de um suposto cônsul belga, em Moscovo, naquela época. O conjunto de tiras de BD em que Tintim descobre que os bolcheviques ameaçavam o povo para conseguirem a vitória nas eleições tem sido apontado como uma transcrição quase integral dos relatos desse cônsul que "viveu em Moscovo".
Este pormenor é repetidamente escrito na imprensa e em blogues especializados na obra de Hergé. Mas uma descoberta recente vem apimentar a história. "Este cônsul nunca existiu", garante o diretor artístico dos Estúdios Hergé, com base nas investigações que desenvolveram para a reedição de Tintim no País dos Sovietes. A conclusão a que chegaram é que o livro "Moscovo sem Véu" (em tradução livre) seria apenas mais uma das manobras da contrapropaganda de combate à União Soviética.
Todo o livro pretende "transmitir uma mensagem, marcadamente anticomunista, para os jovens daquela altura", afirma Bareau (ver entrevista). Numa das cenas, o repórter vai parar a um esconderijo, cheio das riquezas roubadas ao povo por Lenine, Trotski e Estaline.
Em 1930, depois de um período de publicação semanal, a direção do jornal decide pôr termo à publicação da aventura de Tintim em Moscovo. Hergé ficcionou o regresso do repórter a Bruxelas, com uma receção na Grand Place. O final épico confundiu-se com a realidade. Fotografias da época mostram a encenação da chegada, com um ator disfarçado de Tintim. E na última segunda-feira, dia do lançamento da versão a cores, a editora organizou uma sessão de apresentação inspirada nesse regresso de Tintim. Bruxelas respondeu e várias dezenas de pessoas juntaram-se na praça mais emblemática da capital para receber o repórter aventureiro.
A diretora do museu acredita que a edição a cores irá relançar as vendas de As Aventuras de Tintim, embora a obra de Hergé continue "ainda a ser o melhor" no que diz respeito às vendas do museu. "O Tintim e os Estrunfes são os best--sellers", afirma.
Tintim já vendeu 230 milhões de álbuns. É publicado em 77 línguas. O novo livro a cores tem uma primeira tiragem de 300 mil exemplares para o grande público e de 50 mil para colecionadores.