Descobrir Chelas ao som da "Pantera cor de rosa"
Nuno, Idalina e José Augusto ensaiam pequenos movimentos e jogos de voz. Estão numa das salas do centro de desenvolvimento comunitário do Bairro dos Loios, em Lisboa, num workshop de movimento e voz com Margarida Mestre que junta as palavras de Foucault sobre o panótico e a música inconfundível de Mancini para o filme da Pantera Cor de Rosa. Pode parecer que uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas até tem. Afinal, "Pantera Cor-de-Rosa" é como é conhecido o sítio onde moram. Por causa da cor, claro, e também por causa da sua forma serpenteante.
O Bairro dos Loios é um dos conjuntos habitacionais nascidos nos anos de 1970, fruto do Plano de Urbanização de Chelas (1964). Concebido pelos arquitetos Gonçalo Byrne e António Reis Cabrita, o projeto previa vários blocos com quase 400 fogos que se interligam através de galerias exteriores e passagens aéreas. "Uma transição entre o espaço da cidade e o espaço doméstico. Um espaço coletivo, sem fronteiras. Inicialmente, de maneira meio ingénua, os arquitetos diziam que servia para construir relações de vizinhança, mas a coisa não funciona assim", explica Joana Braga, arquiteta e principal responsável pelo projeto Topias Urbanas que o Teatro Municipal Maria Matos está a desenvolver na freguesia de Marvila, em Lisboa, desde novembro passado.
Com o tempo, alguns dos fogos dos Loios mantiveram-se para habitação social, outros não, uns foram vendidos, outros alugados. Há condomínios por pagar, há elevadores que se avariam e não são arranjados. A meio das passagens construíram-se portões que estão soldados, impedindo a livre passagem. Há discussões entre os vizinhos. A degradação dos prédios é evidente. E também há coisas boas, pois claro, como um jardim que floresce entre os blocos, tratado pela Junta de Freguesia mas sobretudo cuidado por um dos moradores, todos os dias, depois do trabalho. "É um espaço incrível, tão fascinante quanto assustador", conclui Joana Braga.
O Bairro dos Loios foi um dos lugares incontornáveis que Joana Braga e a sua equipa encontraram quando aqui chegaram. "Começámos de mãos a abanar", diz. Sem agenda. "À escuta. A reconhecer o que aqui há e como é que este espaço é vivido. Começámos a caminhar por aí, a falar com as pessoas, a viver no corpo as dificuldades dos que aqui estão." Acabaram por se fixar na zona que corresponde ao Plano de Urbanização de Chelas.
"O que mais nos surpreendeu foram os contrastes, as fraturas no território. A cidade é feita de muitos tempos mas aqui é muito claro", diz Joana Braga. "Há as ruínas dos palácios, os complexos habitacionais, muitos espaços expectantes, as hortas clandestinas que nos últimos anos têm vindo a ser regulamentadas, espaços industriais obsoletos. Até há um senhor que tem um rebanho gigante. Mas não há caminhos pedonais - é um bairro atravessado por vias rápidas, como se fosse possível passar por aqui sem o tocar, sem ser afetado."
"É uma zona de Lisboa que foi esquecida durante muito tempo, uma ilha deserta dentro da cidade", explica Mark Deputter, o diretor artístico do Maria Matos. "Há um estigma", admite. Chelas. O que pensamos quando ouvimos este nome? O que respondemos quando nos convidam: vamos a Chelas? Vamos? Este é o desafio primeiro que nos coloca o teatro com o programa Dias de Marvila, que se realiza entre hoje e domingo: visitar Chelas.
O programa - construído em colaboração com a Biblioteca de Marvila e a Zona Não Vigiada, de Monica Calle, que já trabalha na Zona J há mais tempo - inclui espetáculos que já foram apresentados no teatro (como a Coleção de Poemas, de Crista Alfaiate e o Muita tralha, pouca tralha, de Catarina Requeijo), outros que foram criados lá, em residência e depois a programação das Topias Urbanas que nos propõe sobretudo debates com e percursos pelo bairro. Entrar. Conversar com quem lá está. Olhar para os prédios. Jogar à malha.
No domingo, pelas 16.00, o ponto de encontro é no largo à entrada da "Pantera cor-de-rosa" e é aí que começa o jogo. Os visitantes terão de seguir as pistas e percorrer o bairro. "Quando aqui chegámos as pessoas sentiam a nossa presença como uma invasão - porque ninguém ali vai. O jogo performativo anda volta disto." Há um conjunto de moradores que participam de várias maneiras - como Nuno, Idalina e José Augusto, que vão ser uma espécie de coro em algumas cenas. Outros irão contar algumas histórias, mais ou menos fantasiosas, sobre o bairro. E até quem abra a porta de sua casa aos visitantes. Há uns meses isso seria impensável.
DESTAQUES
LS Recycler - Luís Santos é um artista urbano de Marvila que apresenta a sua primeira exposição em espaço formal na Biblioteca de Marvila. Durante todo o fim de semana. Entrada livre.
Onde o horizonte se move - Performance de Gustavo Ciríaco que parte da exploração do espaço e suas histórias. Hoje, 18.30, frente à Biblioteca.
Assembleia - Rui Catalão trabalhou durante semanas em vários bairros da freguesia e criou este espetáculo com os moradores da freguesia. Os protagonistas são Pedro e Solange. Hoje, 21.30, na Biblioteca. Entrada livre mediante levantamento de bilhete uma hora antes.
Cartografia em movimento - Percurso-instalação que propõe uma deriva pelo bairro Marquês de Abrantes com quatro paragens onde há instalações de som e imagem. No final, um encontro entre visitantes e moradores. Amanhã, 18.00. Ponto de encontro na Biblioteca, entrada livre.
Concerto a muitas vozes - Crianças e jovens do bairro apresentam o resultado dos workshops nas férias. Domingo, 17.00, na Biblioteca