Festival Bom dia Atenas! ou o início de uma bela amizade
Há um labirinto a erguer-se na Taberna das Almas, aos Anjos, em Lisboa. Paredes a serem deslocadas ou mesmo apagadas enquanto são só um desenho no chão, questões conceptuais - o enclausuramento, por exemplo - a cruzarem-se com outras do mais pragmático que há - "quantas pessoas cabem neste espaço?" - e onze artistas às voltas com elas. "O labirinto não é o objetivo, é a arquitetura", resume Christos Passalis, do Blitz Theatre Group, coletivo ateniense que se instalou no Regueirão dos Anjos para inventar o "primeiro encontro internacional" de The Institute of Global Solitude (IGS), assim em inglês que, como de costume, o português tem mais que se lhe diga.
Já lá vamos. Para já há que saber que a designação abarca tanto o "instituto que quer mapear a solidão" como o espetáculo construído de raiz por artistas gregos e portugueses, que é também o mais imprevisível e o maior - dura cinco horas, com jantar, conferência, inauguração do Museu da Solidão, encontros íntimos e visitas guiadas à cidade incluídos - do Festival Bom Dia, Atenas!, novo acontecimento bienal organizado por dois teatros municipais, o S.Luiz e o Maria Matos.
"Acho que não chega a ser um festival", começa por dizer Mark Deputter, "é mais uma mostra, ou melhor, o momento em que abrimos uma porta e damos início a uma nova relação". 2016 é o ano da Grécia, berço de muito do que somos e de uma produção cultural que raramente chega aos nossos palcos, da qual agora se apresentam alguns nomes fundamentais.
"Decidimos apresentar estes artistas porque propõe trabalhos consistentes, de grande qualidade", afirma o diretor do Maria Matos, reforçando o caráter artístico da seleção mas não elidindo o cariz politico da mostra: "O mercado das artes continua a ser muito centralizado - nos países mais ricos - não em termos de qualidade artística, mas sem dúvida em termos de poder de projeção, capacidade de circulação e visibilidade. Organizar o Bom Dia, Atenas! tem como objetivo político o abrir de uma porta que junte o sul ao sul, a periferia à periferia". E visitar um país para lá das reportagens nos jornais, nas suas muitas realidades. Ou, nas palavras cruzadas de Aida Tavares, diretora do S.Luiz, e Deputter, ver como "entre o olhar dos deuses e as marcas dos homens, os atenienses, cidadãos do mundo, resistem".
Solidão, solitude
Lugar de Lisboa feito ateniense e, por isso mesmo - por causa da filosofia e da cidadania - lugar do mundo, a Taberna das Almas abriga há duas semanas a investigação do IGS, que em português pode chamar-se solidão ou solitude. Angeliki Papoulia descreve a ordem de trabalhos: "Começamos por tentar definir as várias qualidades de solidão e solitude, um estado de espírito muito aberto que nos permite investigar a nossa relação connosco, com os outros, e até com a religião, por exemplo". E Christos Passalis esclarece: "Há algo de muito agressivo e pornográfico na realidade, os nossos dias não nos deixam grande espaço para a contemplação. Estamos muito sozinhos mas quase nunca a sós connosco próprios".
"É um fenómeno complexo mas também um conceito que pode ser trabalhado como ponto de partida. As ideias abstratas são as mais criativas para nós", acrescenta Giorgios Valais, fazendo a ponte com o espetáculo 6 a.m. How to Disappear Completely (que o Blitz Theatre Group apresenta de 9 a 11 no S.Luiz), onde se trabalha a noção de escapar.
"Há uma espécie de dificuldade assumida de definição, nessa diferença entre aquilo a que chamamos solidão e a solitude, uma prática voluntária de estar só", avança Andresa Soares, um dos oito membros-performers portugueses que o IGS recebe na sua passagem por Lisboa. "E nós temos de encontrar conforto intelectual no que não é confortável, no paradoxo". O instituto inaugura o seu Museu da Solidão na próxima sexta-feira, convidando o público para uma noite de "discursos públicos, encontros privados, bebidas e canções".