"Sou um homem de família, sossegadito. Já fui mais boémio"
O cantor António Zambujo atrasou a entrevista 24 horas mas tinha uma boa desculpa, acabara de chegar do Japão. Onde se apresentara perante uma plateia menos expansiva do que aquela onde iria estar nessa mesma noite, em Gondomar. A vida dele agora é assim, de um lado para o outro, sempre atrás das canções que o tornaram famoso, tal como o Pica do 7. Afinal, até hoje ninguém encheu 28 coliseus de Lisboa e do Porto! A conversa é feita sem pressa, com respostas assertivas e sem fugir aos temas, enquanto o dia-a-dia decorre no Jardim das Amoreiras. Ainda revela que tem 17 novas músicas gravadas no telemóvel, o seu estúdio privado e onde regista tudo o que lhe vem à cabeça esteja onde estiver. Quando passa por ali a cantora Luísa Sobral, não deixam de trocar ideias sobre uma letra que ela está a terminar e tem uma palavra polémica.
A taberna do Sintra ainda lhe diz alguma coisa ou já não se lembra?
Claro que sim, era o sítio onde ouvia o cante. As nossas raízes são muito importantes e estar ali em Beja é quase como ir beber à fonte.
O que o levava a ir ouvir aqueles homens a cantar?
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Gostava daquilo e a minha avó tinha muita paciência e conhecia muitas músicas. Não cantava porque estava de luto por causa dos pais, do marido, de um irmão, mas dizia-me as letras e eu ia ouvir os homens a cantar e acompanhava-os de longe. Eles achavam graça e chamavam-me.
Sei que o punham em cima do balcão porque era muito pequeno!
Era assim mesmo e davam-me copos iguais aos deles de vinho só que com gasosa.
E como é que foi o resto da história da sua carreira a partir daí?
Colaborei nos Trigo Limpinho, fomos a programas de televisão, passámos pelo Júlio Isidro, mas depois parei de cantar ao começar os estudos clássicos. Entrei para o conservatório para estudar clarinete.
E quando vai tocar clarinete num espetáculo seu?
A verdade é que comprei um clarinete há pouco tempo para voltar a estudar. Apesar de me lembrar de tudo, é preciso trabalhar para criar aquele calo que se cria nos lábios.
Ainda acabará a tocar clarinete como o Woody Allen?
Espero que não, ou que seja melhor do que o Woody Allen a tocar clarinete.
Quando é que se deu o clique na vida que lhe mostrou o verdadeiro caminho profissional?
Não há um clique, vai acontecendo devido a certos acasos. Vim cantar para Lisboa no Clube do Fado e numa dessas noites apareceram uns produtores do musical Amália, do La Féria, que estavam à procura de pessoas para cantar. Calhou eu estar lá.
Foi assim tão fácil?
Há mais uns pormenores: eu estava a cantar na Pousada dos Loios, em Évora, e um dos músicos que lá tocava é muito meu amigo. Ele vinha frequentemente substituir um guitarrista no Clube de Fado e numa dessas noites em que ele veio perguntou-me se queria fazer-lhe companhia. O Mário Pacheco [o dono da casa de fado] foi muito simpático quando soube que eu cantava e convidou-me para o fazer quando a casa estava mais vazia. Voltei a ser convidado e fui ficando. Foi então que se deu o convite para o musical do La Féria.
Que papel foi fazer?
Fazia um canastrão, mas achava piada àquilo. Estava numa fase meio perdida e acabou por ser interessante a experiência de palco, que me ajudou depois nos concertos a encarar o público.
E o Filipe La Féria era um encenador muito exigente?
Era e fazia bem a direção de atores. Hoje não me imagino a fazer aquilo mas na altura foi importante, mesmo que ao entrar em palco ficasse a tremer.
Nunca pensou em ser ator a tempo inteiro após essa experiência no palco?
Não, tinha perfeita noção de que a música teria um papel importante na minha vida. O sentido de autocrítica é muito importante para não nos enganarmos. Ao fim de mil representações fui melhorando e passei de muito canastrão para canastrãozinho.
O fado não ficou mais popular por uma questão comercial?
Não sei, as pessoas acabam por pegar no fado e cada um tem a sua visão muito pessoal. Apareceu a Mariza, com uma visão de concerto muito diferente, e levou a música para um conceito mais mainstream. Ela e Ana Moura estão num patamar diferente, depois outros que vão surgindo e dando uma visão muito própria. O que faço nos concertos não é fado, é uma visão muito própria do género e com outras influências, tão ou mais vincadas do que o fado.
Os fadistas mais velhos não se sentem marginalizados com a invasão jovem?
Não sei, sempre fui bem recebido. Cantei durante sete anos no Senhor Vinho e a Maria da Fé nunca me fez qualquer censura, antes total liberdade criativa.
Pode dizer-se que o Senhor Vinho é uma maternidade de fadistas?
Sim, passou por lá muita gente que hoje em dia é conhecida. No meu caso teve um outro benefício, em seis meses vendi mil discos.
Mil discos... Com a música digital, os direitos autorais quase acabaram...
Lucramos menos mas não me posso queixar, os meus últimos discos são todos no mínimo dupla platina. No ano passado, os três discos mais vendidos em Portugal foi um da Ana Moura e os dois meus. Se compararmos com outras épocas, isso sim, vendemos muito menos do que nos anos 80 e 90.
Como ouve música. Faz download ou prefere o CD?
Sou dos que gosto de ouvir em vinil e ando sempre à procura deles. Piratear é que nunca.
O regresso do vinil não é uma paranoia ou até uma moda?
Chamem-lhe o que quiserem e até já ouvi pessoas dizerem que vai ser o futuro - nisso não acredito. O vinil é um gosto pessoal e gosto do objeto. Por esse motivo peço sempre para que os meus discos saiam em edições de vinil também e têm vendido bem.
E tem paciência para andar a comprar agulhas para o braço do gira-discos?
Tenho sim, e hoje em dia podem comprar-se até na internet. Chega a casa num instante.
Fazer mais de cem espetáculos por ano não é extremamente desgastante?
Um bocadinho, mais pelas viagens e não por subir ao palco. Podemos estar cansados mas começa estamos a divertir-nos. A minha música é muito espontânea e há sempre improvisação. E isso estimula-me bastante.
Os portugueses pouco ou nada sabem da sua vida privada. Tem dois filhos...
Sim...
Quem é o António Zambujo quando está em privado?
Sou um homem de família, calmo e sossegadito. Já fui mais boémio, de copos e de sair à noite, hoje em dia já não sou tanto assim. O meu filho mais velho não vive comigo mas o mais novo, tem 6 anos, exige atenção, e eu gosto sempre que estou cá de ter umas rotinas: levantar de manhã para o levar à escola, de o ir buscar, de ir com ele à natação, de brincar com ele. Essas coisas são importantes para mim, criar essas bases na vida tal como na música.
Se o seu filho quiser ser músico vai deixá-lo seguir a carreira?
Claro que sim. O mais velho anda mais connosco na estrada e tem imenso jeito para música - toda a gente lhe diz isso -, não sou só eu. Toda a gente diz que devia estudar música mas ele quer ir para comunicação. Eu não faço pressão, acho que deve seguir o caminho dele. Se gosta de tocar só em casa, que seja assim.
É um cantor que está na moda. Qual é o seu prazo de validade?
Espero não ter prazo de validade, a bem do meu bem-estar. Nunca fiz as coisas, músicas ou discos em função do sucesso que vão ter. Vai surgindo de uma forma natural - todos os artistas dizem isto, mas é o que sinto. O que faço sai de uma forma genuína e sem pensar na parte comercial.
Sem revelar segredos, como é que nasce uma canção?
Sei lá, pode nascer aqui e agora, que vêm à cabeça e que vão surgindo.
Mas vai tomando notas?
Isto [o telemóvel] tem sido a minha salvação. Tem aqui uma coisa que é o dictafone: estão aqui 17 músicas originais! Canto para o microfone, chego a casa e pego na guitarra para fazer as harmonias. É assim, vai-se construindo.
São 17 músicas prontas?
Ainda são esboços, mas há algumas que estão mais adiantadas.
É só música ou está feita a canção na sua forma quase final?
Começo sempre pelas músicas, é isso que tenho aqui.
Trauteia?
Sim, tirararirari.
Não houve até agora uma crise de inspiração criativa?
Não, existem fases em que surgem mais músicas, outras fases em que não surgem tanto. O mais curioso é que a altura em que surgem sempre imensas músicas é durante os ensaios de som. É uma fase muito produtiva.
Esteve recentemente no Coliseu de Lisboa para um último concerto a promover o disco com as canções de Chico Buarque. É uma sala sempre de boas memórias?
Gosto sempre de tocar no Coliseu, naturalmente. Este disco já foi apresentado no Coliseu do Porto, uma sala de que eu gosto bastante também, e agora faltava o da capital. Infelizmente, não pude fazer na data que estava prevista por motivos pessoais [morte do pai] e foi adiado.
Existe alguma influência da música portuguesa no Brasil?
Não, é residual. Tocamos lá muito, todos os anos vou lá três ou quatro vezes fazer uns concertos e digressões, tenho tido público mas também a perfeita noção de que quem me escuta no Brasil é um nicho. A vantagem é que um nicho no Brasil é provavelmente o número de habitantes de Portugal. No Brasil há 200 milhões a falar a língua portuguesa e isso devia ser aproveitado, mas não há forma porque é um país exportador de música e não um importador.
É difícil para os músicos portugueses rivalizar com o que lá se faz?
Não sei se rivalizar é a palavra certa, antes há dificuldade em entrar lá porque se damos um pontapé numa pedra sai um futebolista e um músico. A música corre-lhes nas veias, mas são tantos artistas que passam pelo mesmo do que nós a nível de mercado, daí que parte dos músicos brasileiros venha para Portugal. Têm as mesmas dificuldades do que nós. Não há nenhum artista português que tenha tido a dimensão da Amália e os artistas brasileiros que tocam aqui em Portugal com as salas cheias são os consagrados: Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Chico Buarque, Maria Bethânia. Aos novos, restam os mesmo nichos para quem tocamos no Brasil.
Um nicho de dez milhões é muita gente...
Dez milhões é um pouco de exagero, mas é muita gente, tanta que dá para fazermos espetáculos como aconteceu no fim do ano passado e agora, em novembro, voltamos para mais oito concertos. Vamos percorrer o Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Florianópolis, Belo Horizonte e Salvador da Bahia. De certeza que Montevideu também e há a hipótese de fazermos Buenos Aires. Ou seja, a população é tanta que dá para nos apresentarmos em salas e teatros bons e esgotadas de facto. No Rio, por exemplo, vamos estar a fazer no Circo Voador, na Lapa, que é um espaço ao ar livre muito interessante e muito popular. Aliás, é a primeira vez que me apresento lá numa sala mais popular, porque a anterior era um género de CCB, para umas duas mil pessoas.
Uma última pergunta. Sente-se rotulado ou não?
Rotulado, como assim?
Do género o António Zambujo é X ou Y, é o Pica do 7, é o Lambreta, é o alentejano...
Às vezes, as pessoas dizem-me uma coisa que até acho interessante e agradável, o de ter um som que me identifica. É frequente dizerem "comecei a ouvir uma música na rádio e percebi logo que eras tu antes de começares a cantar". Essa situação é muito interessante, pois criar uma identidade não é fácil.