Eça, Ramalho e uma obra "do arco da velha"
As cartas começavam assim: "Senhor redactor do Diário de Notícias"... Foram 56, publicadas na primeira página do jornal entre 24 de julho e 27 de setembro de 1870. Dia a dia, carta a carta, formava-se o puzzle que viria a dar origem a O Mistério da Estrada de Sintra. A assinatura dos remetentes só se conheceria no último dia, aquele em que os leitores do Diário de Notícias ficaram a saber que era de um folhetim parodiado que se tratava e que aquela história que envolvia um médico raptado, um cadáver e adultério não era verídica. "Temos a honra de ser, etc. J.D. Ramalho Ortigão. J.M. Eça de Queiroz." Assim apareceram. O primeiro, amigo do fundador e diretor do jornal, Eduardo Coelho, com quem a publicação terá sido combinada, tinha 33 anos e o segundo era então um jovem que só em novembro faria 25. O Diário de Notícias existia havia cinco anos.
Mais de 146 anos depois, o jornal volta a publicar, a partir de amanhã, esta obra "muitíssimo singular no nosso património histórico-literário" e objeto de uma "história editorial do arco da velha". Assim a descreve Ana Luísa Vilela, professora no departamento de Linguística e Literaturas na Universidade de Évora e autora da edição crítica de O Mistério da Estrada de Sintra (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015). Leu-o pela primeira vez aos 15 anos, mas achou-o "confuso, uma complicação brutal". Em causa estava a "arquitetura muito especial" da obra que leu já adaptada ao formato de livro, a partir da edição que a Parceria A. M. Pereira publicou em 1885, motivada pelo sucesso popular que os folhetins tiveram e pela forma como terão agitado e intrigado a sociedade portuguesa.
É nessa edição de 1885, que desde então é aquela que tem sido sucessivamente publicada, que surge a célebre carta-prefácio de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão. Nela lê-se: "O que pensamos hoje do romance que escrevemos há catorze anos?... Pensamos simplesmente - louvores a Deus! - que ele é execrável; e nenhum de nós, quer como romancista, quer como critico, deseja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual."
Um Eça aldrabão
"O Eça está a ser irónico e está a ser aldrabão. Porque no fundo o que ele queria era que as pessoas lessem. Faz isso em toda a obra. Diz: "Vou falar de coisas horrorosas, imorais, péssimas, para vocês não fazerem..." Aquilo que diz n"As Farpas [também assinadas com Ramalho] e no prólogo de 1885 é um exercício muito mistificador, porque ele diz que o livro não presta para nada, e aquilo que resulta é uma vontade maior de o ler", defende Ana Luísa Vilela.
Na edição em livro (que o Diário de Notícias agora adapta à publicação de 20 folhetins) de 1885, e mesmo que esta mantenha "uma matriz um bocadinho de puzzle", avisa a professora, "o Eça meteu a unha de uma maneira..." De tal ordem que, se olharmos para o final da obra, quando os autores se revelam, vemos não já o nome de Ramalho Ortigão à frente, mas o de Eça. "E de pleno direito. Porque trata-se de uma obra queirosiana." Mas mesmo na edição original da obra, em 1870, "estava já adquirida no Eça uma desenvoltura de ficcionista. Ele vai usar materiais, métodos, temas, obsessões, que desenvolverá na ficção que conhecemos. No Ramalho é um bocadinho mais difícil avaliar isto, porque ele já era um jornalista proeminente, prestigiadíssimo."
Obra escrita a quatro mãos, é difícil destrinçar o que nela foi escrito por Ramalho, em Lisboa, ou por Eça, que escreveu em Leiria muitas das cartas que compõem O Mistério da Estrada de Sintra. Há, contudo, episódios como aquele em que surge Fradique Mendes (que reencontraremos n"A Correspondência de Fradique Mendes) e que não deixa dúvidas de que é de Eça que se trata. Aí se percebe, explica Vilela, que esta obra funcione para o então jovem escritor como "uma espécie de oficina onde ele vai experimentar muita coisa. Em embrião, já estão contidos muitos dos vetores fundamentais do Eça posterior". Recorde-se que este fora professor de Francês de Eça de Queiroz no Colégio da Lapa, no Porto, dirigido pelo seu pai. Tornar-se-iam depois amigos para a vida, até à morte de Eça, em 1900, em Neuilly-sur-Seine, Paris. Ramalho foi, aliás, o último amigo a vê-lo com vida.
Não se conhece correspondência que os dois autores tenham trocado durante a escrita d' O Mistério da Estrada de Sintra. Contudo, com o que se lê de um e outro n"As Farpas, percebe-se, afirma Ana Luísa Vilela, que "há uma grande sintonia nestas coisas posteriores. Uma sintonia quase perfeita".