Corrupção, traição e escândalo sai de cena do teatro de São Paulo
O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, demitiu no início deste mês o maestro John Neschling, diretor artístico do Theatro Municipal da maior cidade brasileira, sob suspeita de tráfico de influência e conflito de interesses. Mas este foi apenas o último ato de uma tragédia, ou farsa, iniciada meses antes com a acusação, e posterior confissão de culpa, de um desvio de quase cinco milhões de euros da instituição pelos seus dois principais gestores.
Denunciado por eles, Neschling, considerado um herói da música no Brasil e respeitado pelo mundo, tornou-se o protagonista do escândalo. Quebrou o silêncio nos últimos dias. Chamou "cobarde" a Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), "ignorantes" aos vereadores paulistanos, "mentirosos e bandidos" aos dois gestores que o denunciaram e "traidor" ao ex-assistente que o substituiu no cargo. O assunto enche há semanas os suplementos culturais dos principais jornais do país e deixou em estado de choque a intelectualidade brasileira.
Nascido no Rio de Janeiro, filho de judeus austríacos, Neschling estudou com Leonard Bernstein e outros mestres, venceu concursos internacionais de regência, compôs as bandas sonoras dos principais filmes brasileiros dos anos 1970 e ocupou cargos de relevo em teatros europeus, entre os quais, segundo a sua biografia, o de São Carlos, em Lisboa.
Com fama de autoritário e individualista, o maestro que foi casado com a atriz Lucélia Santos, de quem tem um filho ator, chegou a regente e diretor artístico da Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo (OSESP), tornando-a, segundo a crítica internacional, uma das melhores do mundo. Mas saiu da OSESP em conflito com as autoridades paulistanas, entre os quais o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso e o então governador do estado José Serra, ambos do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB). Foi demitido por unanimidade e generosamente indemnizado após batalhas judiciais.
[destaque:Maestro é acusado de só contratar artistas agenciados pelos seus empresários]
Por isso, quando o Theatro Municipal o contratou há três anos, depois de um exílio como freelancer na Europa, já se esperava, além de qualidade, também controvérsia, a começar pelo seu salário de mais de 40 mil euros.
No final de 2015, um escândalo envolvendo José Herência, diretor da fundação que o mantém, e William Nacked, gestor do instituto que lhe administra as contas, sacudiu as estruturas do Theatro Municipal. No total, cerca de 18 milhões de reais (à volta de cinco milhões de euros) haviam sido desviados dos cofres da instituição. O Ministério Público de São Paulo, a Controladoria-Geral do Município e a câmara municipal, por meio de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), tomaram conta do caso. Herência e Nacked confessaram sobrefaturamento em espetáculos. Mas assinaram um acordo de delação premiada em que apontaram o dedo a Neschling. Segundo eles, o maestro só contratava artistas agenciados pelos seus empresários no estrangeiro, o que configura "conflito de interesses" e "tráfico de influência".
"Há 15 ou 20 agentes de ópera no mundo, é lógico que alguns artistas partilham os mesmos agentes que eu, essa acusação vem de dois mentirosos e bandidos de cujas falcatruas eu não participava", disse Neschling, ao jornal Folha de S. Paulo, dias depois de ter permanecido em silêncio durante horas no inquérito da CPI. "Os vereadores são de uma ignorância agressiva", explicou. "E o prefeito demitiu-me porque não teve carácter", prosseguiu na mesma entrevista em que também não poupou o ex-braço direito Eduardo Strasser. "É um traidor, um bobo, um garoto de 30 anos, um regentinho de merda que eu tirei da sarjeta."
Os visados ainda não contra-atacaram. Em plena campanha eleitoral municipal, São Paulo foi abalada pelo escândalo de corrupção - mais um, a afetar a cidade e o país - e pela troca azeda de acusações. O fim da tragédia, ou farsa, pode estar longe.
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